Por Aline Mazzo, da Folhapress
SÃO PAULO – Depois de quase oito anos morando sob o viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida, na Avenida Salim Farah Maluf, no Tatuapé (zona leste de SP), o catador de recicláveis William Oliveira, 35, teve de buscar outro lugar para dormir desde a última quinta-feira, 28.
O lugar em que ele colocava o colchão de casal ganhado para descansar depois de rodar o dia todo atrás de papelão, ferro e plástico, agora está cheio de pedras desniveladas e pontiagudas, que o impedem de deitar por ali.
Na tarde de quinta-feira, 28, funcionários de uma empresa contratada pela prefeitura concluíam a colocação das pedras, que são presas ao chão por uma espessa camada de cimento, na parte debaixo do viaduto no sentido bairro da avenida. Do outro lado da pista, a obra já havia sido finalizada. “A gente faz porque é obrigado, mas até aperta o coração tirar o teto de quem já mora na rua”, disse um dos trabalhadores.
Além de Oliveira, outros catadores de recicláveis costumavam dormir ali, pois havia espaço para deixar a carroça e objetos pessoais, como ele explica. “Não tinha muita gente, uns três ou quatro. E a gente nunca montou barraco. Não parecia favela”.
Desde 2007 morando na rua, o catador conta que encontrou seu canto sob o viaduto. “Aqui era a minha casa mesmo. Até os meus irmãos, que moram no Itaim Paulista, vêm me visitar de domingo aqui”, diz.
A menos de 1 km dali, a parte inferior do viaduto Antônio de Paiva Monteiro também foi coberta por pedras quadradas no fim do ano passado. Quem trabalha próximo conta que o local sempre foi ocupado por alguns moradores de rua, que sumiram após a intervenção da prefeitura.
“Às vezes a prefeitura passava e levava as coisas dos catadores, para eles não ficarem aí. A maioria era tranquilo. Só um ou outro que ficava mais exaltado. Mas acho que cansaram e resolveram colocar essas pedras, assim não dá mais para ninguém ficar aí”, conta o frentista Rafael Gomes da Silva, 21, que trabalha no posto de combustíveis ao lado do viaduto.
A capital tem 24.344 moradores de rua, segundo censo feito pela prefeitura em 2019. Desse total, 8,8% ocupavam baixos de viadutos. A região da Subprefeitura da Mooca, onde ficam os viadutos que receberam as pedras, concentrava 835 pessoas em situação de rua, ficando atrás apenas da Subprefeitura Sé (7.593).
William e outros dois moradores dizem não ter sido avisados com antecedência da necessidade em deixar o local onde dormiam e reclamam que não foram procurados pelo serviço de assistência social.
“Eu acordei com o pessoal da prefeitura descarregando o material para começar a trabalhar. Agora vou ter que me virar para achar um lugar que pelo menos não molhe com a chuva”, diz o catador.
A Prefeitura de São Paulo infomou, por meio de nota, que “desconhece a ação citada” e que será aberta uma sindicância para apurar o ocorrido. As pedras colocadas sob os viadutos “já estão sendo removidas”, afirma trecho da nota.
A gestão Bruno Covas (PSDB) ainda informou cumprir o decreto Nº 59.246/20, que dispõe sobre os procedimentos e o tratamento dado à população em situação de rua durante as ações de zeladoria urbana.
“É vedada a retirada de pertences pessoais como documentos, bolsas, mochilas, roupas, muletas e cadeiras de rodas. Podem ser recolhidos objetos que caracterizam estabelecimento permanente em local público, principalmente quando impedirem a livre circulação de pedestres e veículos, tais como camas, sofás, colchões e barracas montadas ou outros bens duráveis”, informa nota enviada à reportagem.
Para a arquiteta urbanista Paula Freire Santoro, professora da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), da USP, e coordenadora do LabCidade, a obra é declaradamente desumana ao criar uma “nova arquitetura do genocídio da população de rua”.
“Como pode um gestor construir algo feito para machucar, para não deitar, para fazer as pessoas sumirem dali? Isso não diminui o desafio que é acolher essa população nem reduz o número de pessoas nas ruas, mas é bem mais simples do que encarar os problemas sociais”, critica.
Santoro ainda afirma que a colocação de pedras sob os viadutos é reflexo da desarticulação de ações da gestão municipal, que possui uma Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania para cuidar da população mais vulnerável, mas outros setores têm ações discordantes. “A gente tira pessoas desses espaços e não dá qualquer função ou uso social para esse local nem assistência a esses moradores de rua. Isso é um grave problema de gestão”.
A Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, informou que realiza busca ativa para abordar pessoas em situação de rua e oferece acolhimento nos equipamentos da rede. Os viadutos em questão, segundo a pasta, são monitorados e as ações são intensificadas quando “há pessoas em situação de vulnerabilidade no local com atendimentos de orientação à saúde, documentação, obtenção de benefícios dos programas de transferência de renda e encaminhamento para centros de acolhida”.
O urbanista Renato Cymbalista, professor da Uninove e da FAU-USP, alerta para a repetição de ações equivocadas voltadas à população de rua. “Conhecemos esse tipo de medida, que ataca o sintoma e não a causa dos problemas. A prefeitura de São Paulo vem tratando o problema há décadas desta forma. Se medidas repressivas resolvessem o problema, São Paulo não teria um só morador de rua”.
Em fevereiro de 2020, a prefeitura, já sob a gestão Bruno Covas (PSDB), colocou grades sob o viaduto Deputado Antônio Sylvio Bueno, em Guaianases (zona leste de SP), para evitar a ocupação de moradores de rua. Na ocasião, a subprefeitura da região afirmou se tratar de obras de revitalização da área.
Na gestão Fernando Haddad (PT), em 2014, a prefeitura instalou paralelepípedos junto às pilastras sob os trilhos da linha 1-azul do metrô, na avenida Cruzeiro do Sul, na zona norte, onde dormiam moradores de rua sob a justificativa de evitar pichações no local.
Em 2010, a prefeitura, sob o comando de Gilberto Kassab (PSD), construiu uma rampa sob o viaduto João Julião da Costa Aguiar, em Moema (zona sul de SP), impedindo que moradores de rua dormissem no local. A gestão afirmou que a medida impedia o descarte de lixo.
Também sob a gestão de Kassab – em mandado assumido após José Serra (PSDB) deixar a prefeitura –, a reforma da praça da República (região central), em 2007, foi alvo de críticas após a colocação de bancos de madeira com divisória de ferro que impediam as pessoas de deitarem, apelidados de bancos antimendigos.
Na ocasião, o secretário municipal das subprefeituras e subprefeito da Sé, Andrea Matarazzo, afirmou que os bancos foram escolhidos porque são os mais adequados à arquitetura da praça.
Para Cymbalista, a capital poderia olhar para experiências de países que conseguiram equacionar o problema da população de rua, como a Finlândia.
“Lá, há décadas o que prevalece é a ideia do ‘housing first’, oferecer moradia bem localizada e integrada, e o apoio social específico que cada pessoa precisa. É um país rico, mas outros países ricos não conseguiram avançar tanto, então o modelo faz sentido como inspiração, a ser adaptado conforme a nossa realidade”.
Já Santoro propõe uma nova alternativa aos espaços sob viadutos. “Por que não revertemos essa obra em uma intervenção humanitária, com espaços voltados a acolher população de rua, mas a fim de ajudá-los com questões como o vício em álcool e drogas, capacitação, oferta de emprego e cultura. Seria transformador”.