Recentemente, completaram-se os 45 anos da última edição do Festival Internacional da Canção (FIC), ocorrido em 1972. Um festival marcado pela dissolução do corpo de jurados em consequência de uma entrevista e em que foram revelados artistas como Raul Seixas, Fagner, Oswaldo Montenegro e Alceu Valença. A música vencedora narra um lance de futebol protagonizada por um jogador reserva e entrou para a história como símbolo de festa, alegria e também de ingratidão.
O 7º FIC, o primeiro festival transmitido a cores, foi marcado por grande momento cinzento: a extinção do corpo de jurados, que havia analisado as 1912 músicas inscritas e selecionado 30 delas.
O motivo da controversa decisão foi o fato da cantora Nara Leão ter feito algo que muitos brasileiros, com razão, faziam e continuam fazendo até hoje: criticou o governo. Os militares não gostaram dos comentários e ordenaram à Rede Globo, organizadora da competição, que a artista deveria perder seu posto de presidente do júri.
A reação dos outros membros não foi complacente e o resultado foi a substituição de todo o júri por estrangeiros. No dia 17 de setembro, data da transmissão da final, no Maracanãzinho, o ex-ministro da Cultura no governo Temer, Roberto Freire, tentou subir no palco para ler um manifesto de desagravo. Conseguiu ler as primeiras palavras, mas foi agarrado por seguranças truculentos e, nos camarins, recebeu alguns fortes contra-argumentos. A maioria deles, de mão fechada. Ninguém de casa viu porque, para o azar de Freire, a leitura ocorreu durante o intervalo comercial.
A rigor, em relação às edições anteriores, o FIC de 1972 nada deixou a dever em termos de qualidade das composições e revelação de novos talentos. Raul Seixas, por exemplo, apareceu nacionalmente com duas composições classificadas: “Let me Sing, Let me Sing” e “Eu sou eu, Nicuri é o diabo”.
O episódio da troca de júri, porém, acabou trazendo má fama ao festival “FIC na sua”. Para muitos, a mudança era devida à intenção de militares e da Globo que a música vencedora não abordasse a realidade do país.
Meses antes, um jogo de futebol pouco importante seria decisivo para o festival. No dia 15 de janeiro de 1972, Jorge Ben foi um dos 44.280 espectadores que vibraram, no Maracanã, com a vitória por 1 a 0 do Flamengo sobre o Benfica, no Torneio Internacional de Verão do Rio de Janeiro. A partida não foi transmitida e não houve nenhum adivinho para prever que deveria levar uma câmera para registrar um lance que ficaria para a história.
Nessa partida, João Batista Sales, atacante mineiro de dentes tortos que marcou 44 gols em 167 jogos pelo Flamengo, fez jus ao apelido de Fio Maravilha. O camisa 14 substituiu Arilson e, aos 33 minutos do segundo tempo, fintou os zagueiros Messias e Malta da Silva, passou pelo goleiro do Benfica, José Henrique, e marcou o gol decisivo. Graças a Jorge Ben, conhecemos o lance “de ouvido”: “Tabelou, driblou dois zagueiros; deu um toque driblou o goleiro; só não entrou com bola e tudo porque teve humildade”.
Da vibração do Maracanã à consagração no Maracanãzinho. Campeã pelo público, a inspirada e eletrizante música interpretada pela cantora Maria Alcina também agradou os jurados gringos e foi a vencedora do festival, que se tornou o “FIC maravilha”.
O sucesso avassalador da música também despertou ganância. Convencido por um amigo advogado, o jogador não manteve a humildade exaltada na canção e “entrou com bola e tudo” num processo judicial contra o compositor, reivindicando partilha de direitos autorais pelo uso do nome dele. Em reação, Jorge Ben renomeou a música como “Filho Maravilha”.
“A ficha caiu” quando Fio ouviu duas senhoras cochichando sobre ele: “você conhece esse rapaz aí? É aquele ingrato que tá processando o Jorge Ben, que homenageou ele”. Para completar, Fio perdeu o caso e, ao contrário do que ele pretendia, perdeu dinheiro ao ter que arcar com todos os custos do processo.
O FIC passou, mas muita coisa permanece. Motivos para criticar o governo; reação dura contra quem pensa diferente; preferência por músicas com letras amenas; impossibilidade de se saber quando algo será especial; momentos inesquecíveis são registrados mesmo é na memória; gente de fora escolhendo melhor que os de dentro; e a preferência pelo dinheiro imediato a manter uma reputação duradora.
E também a quantidade de gente que diante de um benefício segue a observação irônica de Alexandre Dumas: “Há favores tão grandes que só podem ser pagos com a ingratidão”.