Por Allan Gomes, especial para o Amazonas Atual
MANAUS – O cinema brasileiro sofreu um momento de baixa em sua produção no início dos anos de 1990, com nenhum longa-metragem rodado. A partir de 1994, contudo, houve o momento conhecido como Retomada, e a produção brasileira voltou a lançar número significativo de filmes. No Amazonas, essa retomada levou mais tempo para se consolidar, e foi só em 2012, com o longa-metragem “A Floresta de Jonathas”, de Sérgio Andrade, que o cinema local voltou a ocupar salas comerciais no país.
Agora, o cineasta amazonense prepara o lançamento de seu segundo longa-metragem “Antes o tempo não acabava”, em que assina a direção com Fábio Baldo, montador do primeiro filme. Sérgio esteve na semana passada no Festival de Berlim, onde apresentou pela primeira vez ao público o novo trabalho e de lá conversou com o AMAZONAS ATUAL. Na conversa “teclada”, ele contou características da carreira, aspectos da produção de cinema no Brasil e, claro, políticas públicas para a cultura no Amazonas.
ATUAL – Você começou na cena cultural da cidade ainda trabalhando com música, certo [Sérgio era vocalista da banda Monstro Lake, nos anos 90]? Como foi a guinada para o audiovisual?
SÉRGIO ANDRADE – Meu trabalho com audiovisual começou bem antes, na verdade, em meados dos anos 80 trabalhei com Natacha Andrade e Salete Lima, numa das primeiras produtoras de vídeo que Manaus teve, a ACTvideo. Tinha 17 anos então, mas antes disso aconteceu um fato que foi um motivador forte da minha paixão pelo cinema: fui figurante do mítico longa “Fitzcarraldo” de Werner Herzog, gravado no Teatro Amazonas. Eu tinha então 13 anos, e me vi de fraque e cartola num set de sonhos, com Klaus Kinski, Claudia Cardinale, José Lewgoy e outros. Sem dúvida a música teve um papel muito importante na minha formação artística e intelectual, principalmente esse período do rock manauara do fim dos 90, inclusive isso está refletido em “Antes o Tempo Não Acabava”, que mostra uma cena rockeira de Manaus.
ATUAL – Acompanhando teus trabalhos desde os curta-metragens, vejo uma aproximação forte com a questão indígena e seu lugar no mundo contemporâneo. Como ocorreu essa aproximação?
SÉRGIO – Sempre fui fascinado pelo lendário indígena e pelas expressões de linguagem e arte dos índios. Minha abordagem começou muito forte nesse terreno, sem nenhuma pretensão antropológica ou etnológica. Gosto das simbologias e meu trabalho criativo visa também desmistificar muito do exótico acerca do universo nativo. Me debruço fortemente sobre os indígenas que moram na cidade grande, que continuam índios, mas são habitantes urbanos.
Tive um contato mais forte ainda com indígenas quando filmei “Cachoeira” (curta-metragem, 2010). Inspirado em fatos reais, é uma alegoria do choque entre o álcool, o rock e o imaginário indígena. O resultado ali já dava o tom da proposta artística e narrativa com que gosto de trabalhar e ao mesmo tempo me pôs em contato com meus amigos do elenco indígena, com quem adoro trabalhar, pois além de serem talentosos, contribuem com ideias e são disciplinados.
ATUAL – Tu acreditas que esse pode ser um ‘nicho’ para o cinema brasileiro? Digo isso no sentido de ser um universo muito amplo a se explorar e com a perspectiva de termos nossos próprios gêneros na cinematografia, como os filmes ‘de favela’ ou ‘de sertão’?
SÉRGIO – Acho que a cinematografia brasileira tem que investigar mais o homem da região Norte e sua mentalidade. Temos grandes incursões do cinema nacional pelas mentalidades urbana e rural do Sudeste, do Sul e do Nordeste – que deu uma guinada recente com a cena atual do cinema pernambucano e cearense, mas a região Norte, sua riqueza humana, as manifestações do imaginário indígena e mestiço ainda não foi explorada devidamente, o cinema de ficção principalmente, em que podemos colocar nossas expressões e sotaques em prol do imaginário riquíssimo.
A Amazônia suscita documentários etnográficos e ambientalistas, mas não deve jamais ser esquecida como palco de lendas e histórias instigantes para a ficção e o lúdico.
ATUAL – Saindo um pouco dos aspectos estéticos, vamos falar de políticas públicas para o cinema. Desde o período da Retomada, a produção de cinema brasileiro vem crescendo e o desafio atualmente estaria na distribuição. Os teu projetos também sofrem com isso?
SÉRGIO – As políticas públicas e os avanços conseguidos para o custeio da produção audiovisual tem tido resultados comprovados e benéficos. O sistema de contribuições e receitas funciona com eficiência, o Codecine é exemplo disso e acho um absurdo as teles quererem suprimi-lo. Sem dúvida esse parque de editais e fomento que se instituiu, pela Ancine e Fundo Setorial do Audiovisual tem sido abrangente, regionalizado e dá resultados, mas é preciso evoluir a parte dos programas de apoio à distribuição. Os editais que temos para essa etapa são atrelados à condições absurdas e ineficazes, é preciso modificar e investir sem amarras. Espero que a Ancine reveja isso.
Em regiões sem tradição ou ainda incipientes, como a nossa, há que se encontrar um sistema de investir em distribuição adequada para a realidade local, [restrita a] salas de cinema de shopping e repertório comercial demais.
As outras mídias, como TV e Internet, podem ser uma janela significativa para regiões como a nossa, mas aí percebo uma falta de formação e criatividade. É preciso investir para qualificar as mentes de quem produz conteúdo.
Quanto aos filmes que faço, fazem parte de um cinema mais autoral, esse é um nicho que tem crescido no Brasil e surgem distribuidoras interessantes que se desdobram para achar uma rede de exibidores que acolham esses filmes, mas ainda há muito o que evoluir.
Algo lamentável também foi o fim – ou suspensão – do Petrobras Cultural, que tinha um providencial edital de distribuição que impulsionava o mercado de filmes autorais. Espero que volte.
ATUAL – Como tu enxergas o recrudescimento de investimentos dos governos locais no desenvolvimento do audiovisual? Editais cada vez mais raros, descontinuidade do Amazonas Film Festival…
SÉRGIO – Uma política cultural tem que ser um plano estratégico perene, um programa de Estado constitucional. Pernambuco tem uma lei, lei mesmo, que obriga a realização de chamadas e editais de cultura. O problema no Amazonas é de exibicionismo político, as ações em qualquer área, e aí a cultura é nevrálgica, parecem ser para garantir votos e exposição do governador. É um jogo de poder. Isso inviabiliza qualquer continuidade e evolução. A Secretaria de Cultura tem o modos operandi, é eficaz ao fazer, tem capacidade, mas não conta com autonomia constituída, e eventos que deveriam se tornar instituições de formação e desenvolvimento, viram apenas um festejo temporário, como no caso do Amazonas Film Festival, que precisa voltar urgentemente.
Acho que a cultura do Estado realizou e realiza muito, tem visão e procura meios bem competentes para investir no artista local. Imagine se ela contasse com uma lei de incentivo perene… Louvo que tenha surgido o edital em parceria com o FSA, apenas torço é que se repita por mais 20 anos, e mais e mais. O que impediria?
A Prefeitura de Manaus precisa justamente se organizar administrativamente e parar de ter investimentos flutuantes na Cultura, que são garantidos apenas se não faltarem recursos em outras áreas, os recursos pra Cultura não podem ser compulsórios, mas obrigatórios.
ATUAL – Temos visto que “Antes o tempo não acabava” já teve uma boa repercussão em Berlim. Quais os próximos passos do filme e quando poderemos assisti-lo em Manaus?
SÉRGIO – Estamos aqui em Berlim muito felizes com a reação do público, as primeiras recepções da crítica, super positivas. Ficamos muito realizados de ver o nome de Manaus neste ambiente poderoso de repercussão que é a Berlinale. Eu e Fábio Baldo, mais os coprodutores Ana Alice de Morais e Paulo de Carvalho e o elenco Anderson Tikuna, Rita Carelli e Begê Muniz, estamos numa roda viva de entrevistas e debates que só avivam a centelha do filme. “Antes o tempo não acabava” é uma obra para ser vista e revista, discutida em debates, queremos que vá a muitos festivais mundo afora, só depois é que vamos pensar em sua carreira comercial. Já temos distribuidor internacional, a UDI, e nacional, a Livres Filmes. Nosso sonho é que chegue em Manaus também dentro de um festival, ainda em 2016.
Texto produzido pela Berlinale sobre o filme:
“Com poderosas imagens acompanhadas por música eletrônica, os diretores Sergio Andrade e Fabio Baldo criam o retrato de um andarilho entre dois mundos. Um – em perigo e alimentado por mitos e lendas – está desaparecendo no espaço cada vez menor que lhe é concedido pelos conquistadores brancos. O outro é barulhento e desgastante, mas talvez seja o que Anderson vai melhor se desenvolver . Evitando ser didático , o filme pinta um retrato documental de sonho sobre uma cultura prestes a desaparecer”
Confira o trailer de “Antes o tempo não acabava” feito exclusivamente para a Berlinale:
Trailer TIME WAS ENDLESS from UDI on Vimeo.