Por Laura Mattos, da Folhapress
SÃO PAULO – Que o ensino presencial é melhor do que o remoto ficou mais do que óbvio com a pandemia, mas quem está admitindo isso agora é o astro das aulas online.
O americano Salman Khan, 44, é fundador da Khan Academy, uma das maiores plataformas mundiais de educação a distância. Quando ninguém falava de aula online, em 2004, ele, que é matemático, fez vídeos para ensinar matemática a seus primos. A performance fez sucesso e dali nasceu o empreendimento de reforço escolar gratuito que, na pandemia, triplicou o acesso, realizando 90 milhões de reuniões por dia.
Ele passou a prestar mais atenção ao que se ganha na convivência presencial a partir das dificuldades que teve como pai de três crianças durante a pandemia. Pretende então voltar mais a Khan Academy a valores que classifica como intangíveis, como “o bem-estar emocional, o quão conectado o aluno está, quão sozinho se sente”.
À Folha, entre outros temas, fala da necessidade de se criar formas para preencher as lacunas de aprendizado da pandemia e do abismo entre escolas públicas e privadas no Brasil. O educador, que tem se aproximado da educação brasileira e ampliado a versão em português da Khan Academy, participou do SAS Summit, evento realizado no fim do primeiro semestre pelo SAS, plataforma utilizada por mais de 900 escolas no Brasil.
Folha – Como reavalia o ensino remoto a partir da pandemia?
Salman Khan – A tecnologia possibilitou que professores continuassem ensinando, e alunos, aprendendo. Mas, se você comparar uma aula online a uma presencial, se todo o resto for equivalente, a presencial é preferível. Se tivesse que escolher entre uma aula presencial com um ótimo professor ou a melhor tecnologia de ensino remoto, sempre iria escolher a presencial. O que faz a diferença é como se usa cada experiência.
Professores reconheceram que, em videoconferência, não é ok ficar apenas dando aulas expositivas porque os alunos se desengajam ou nem aparecem. Deve-se fazer perguntas aos alunos, mantê-los envolvidos. É preciso que a comunicação seja de duas vias e que, ao longo da aula, se divida a turma em grupos menores para fazer com que os estudantes trabalhem entre si.
Essas práticas descritas como as melhores para o ensino remoto são também as melhores para o presencial. Se você tem, de um lado, uma aula online com os alunos participando e sendo desafiados, e, de outro, uma presencial com estudantes fingindo prestar atenção, escutando passivamente uma aula expositiva, a remota seria melhor. Não por ser remota, mas porque seu conteúdo é mais rico. Do mesmo modo, se tem uma aula presencial estimulando as pessoas, deixando-as falar umas com as outras, com desafios, jogos, divisão em grupos, essa será a modalidade preferível.
Folha – Como foi a experiência como pai de três crianças na pandemia e como isso afetou a sua visão como empreendedor da educação?
Salman Khan – A escola dos meus filhos é preparada para a tecnologia. O currículo já era centrado no interesse do aluno. Mas, mesmo assim, foi muito difícil para os meus filhos, que têm 12, 9 e 6 anos. O de 9 e o de 12 eram capazes de continuar aprendendo, mas eu tinha que ser proativo para levá-los para fora, brincar com amigos, porque isso os estava afetando. No caso do mais novo, tínhamos que acompanhá-lo para saber se estava focado, ensiná-lo a ficar conectado e ver se estava seguindo a grade da escola. Quando as coisas ficavam mais difíceis, havia boas conversas entre as famílias e os professores. Mas foi muito duro, mesmo com as condições tão privilegiadas que tivemos, como um quintal onde as crianças podiam brincar e o clima bom da Califórnia [a família mora em Mountain View, no Vale do Silício].
Como empreendedor, a experiência me fez valorizar ainda mais as coisas intangíveis. Sempre pensava em como ajudar as pessoas a aprender mais, de forma acessível, como deve ser um modelo de ensino, como medir a eficácia. Mas há coisas como o bem-estar emocional, o quão conectado você está, quão sozinho se sente. A pandemia pôs um holofote em tudo o que se ganha quando se está entre outras pessoas. Tenho pensado mais nesse lado da equação e como isso pode se relacionar à Khan Academy.
Folha – Como a Khan Academy foi impactada pela pandemia?
Salman Khan – O tráfego triplicou. Tínhamos normalmente 30 milhões de reuniões de aprendizagem por dia, isso foi para 85, 90 milhões. Isso colocou muita pressão sobre nós, mas uma pressão boa para acelerar a produção de conteúdo com orientação sobre ensino remoto e híbrido.Demos início ao Schoolhouse.world, outra organização sem fins lucrativos de aulas de reforço, porque percebemos que existia dificuldade de se conseguir ajuda ao vivo na internet.
Todo mundo agora está falando sobre as perdas de aprendizado da pandemia, em como preencher as lacunas e saber onde cada aluno está. É exatamente para isso que a Khan Academy foi desenvolvida. A razão pela qual estudantes têm dificuldades não é porque não sejam inteligentes, não tenham bons professores ou porque a matéria seja difícil, mas porque vêm acumulando lacunas ao longo dos anos e nunca tiveram oportunidade para preenchê-las, e isso ficou muito mais acentuado com a pandemia.
Folha – Você concorda que as consequências negativas do fechamento das escolas, especialmente para a saúde mental, são maiores do que um eventual ganho de autonomia dos alunos?
Salman Khan – O impacto foi negativo para todos. Deixou famílias e professores esgotados, os alunos não aprenderam muito e todos sofreram do ponto de vista socioemocional. A pandemia pode ter acelerado o debate sobre o fosso digital, com tantas pessoas ainda sem acesso à internet, o fato de que o aprendizado não precisa ser limitado por tempo ou espaço, o “mastery learning” [aprendizado de domínio, em que o aluno recebe apoio para dominar uma etapa do conteúdo para seguir para a próxima]. Mas, sem dúvida, foi muito mais negativa para a educação.
Folha – De acordo com uma pesquisa da Universidade de Zurique (da Suíça), os estudantes da rede pública de São Paulo tiveram uma perda de 70% do aprendizado esperado para 2020 e o risco de evasão escolar triplicou.
Salman Khan – É absolutamente necessário um plano de recuperação de desastre. Precisamos de mecanismos para que os estudantes identifiquem as lacunas que tiveram e as preencham. É preciso haver caminhos para que os alunos que abandonaram a escola possam voltar. Saber onde estão, se estão trabalhando, se continuam estudando de alguma forma, ajudá-los a se desenvolver. Se não criarmos sistemas mais tolerantes à falta e não dermos oportunidades para que se reengajem, não quero soar dramático, mas podemos perder toda uma geração.
Folha – Como podemos superar o abismo entre o ensino público e o privado, que já existia no Brasil e foi ampliado pela pandemia?
Salman Khan – A missão central da Khan Academy é proporcionar educação de qualidade gratuitamente para qualquer pessoa, em qualquer lugar. Soubemos que os filhos do Bill Gates estavam usando a Khan Academy, e isso é bom, mas obviamente poderiam usar qualquer outra ferramenta. Isso, no entanto, pode chamar a atenção, por exemplo, de uma família em uma favela brasileira: “Meus filhos podem, de graça, acessar exatamente as mesmas ferramentas que os filhos do Bill Gates”. Se essa mensagem chegar e se esses estudantes se engajarem por 20, 30 minutos por dia, especialmente se tiverem apoio dos pais e dos professores, temos confiança de que serão capazes de prosperar tanto quanto alunos de escolas particulares. Essa sempre será uma árdua batalha, mas ferramentas digitais com aulas de reforço gratuitas podem ajudar a equilibrar as oportunidades.
Folha – Mesmo com acesso digital, estudantes tiveram perdas acadêmicas e o fechamento das escolas ampliou a ansiedade, a depressão e o suicídio. Você imaginava que os danos seriam tão profundos?
Salman Khan – Não, mas vou defender um pouco o ensino remoto. Os danos seriam ainda maiores se isso tivesse acontecido há 30 anos e não tivéssemos aulas remotas. As crianças teriam ficado totalmente isoladas, sem a possibilidade de ter contato com colegas e professores. Não quero fingir que o ensino remoto é melhor do que o presencial, mas não significa que seja ruim. Ansiedade, depressão e solidão já eram questões antes e devem ter piorado na pandemia. Temos que pensar, como sociedade, em como lidar com isso.
É preciso criar espaço nas escolas para trabalhar com essas questões, assegurar que as crianças se conectem umas com as outras pessoalmente e não só por redes sociais. Há muito desse universo online que deve estar prejudicando a saúde mental. Por outro lado, podemos usar ferramentas online para ajudar na conexão humana. A missão da Schoolhouse.world, por exemplo, é conectar o mundo através da educação, criando vínculos saudáveis pela internet. Há caminhos para alavancar a tecnologia nas aulas de maneira mais humana.
Folha – A pandemia deixou claro que o ensino remoto não é eficaz para crianças e jovens e que funciona bem apenas como complemento ao presencial?
Salman Khan – As aulas presenciais devem ser a base e são preferíveis às remotas, quando temos condições iguais nas duas modalidades. Mas o ensino remoto pode ser um complemento poderoso. Você pode dar aos estudantes acesso a coisas não disponíveis na sala de aula. Além disso, em uma situação emergencial, como a pandemia, um furacão, ou quando um estudante fica doente, pode ser a salvação para que se possa seguir aprendendo. Também é valioso quando o conteúdo em sala de aula não faz sentido para o estudante, para que ele possa ter outra voz em qualquer lugar do planeta a ajudá-lo.
Salman Khan, 44
Filho de imigrantes – a mãe é da Índia e o pai, de Bangladesh –, o americano é formado em matemática e em engenheiro pelo MIT, com MBA na Universidade Harvard.
Atuava como analista de fundos de investimento quando, em 2004, passou a ajudar primos com dificuldades em matemática. Como moravam longe, ele os orientava por telefone até ter a ideia de gravar aulas e colocá-las no YouTube. Sua performance fez tanto sucesso que ele inaugurou, em 2008, a Khan Academy, organização sem fins lucrativos de educação gratuita a distância, que recebeu investimento de US$ 2 milhões do Google e de US$ 1,5 milhão da fundação de Bill Gates.