Durante toda minha infância, sempre que acontecia alguma situação de perigo com as crianças e elas sobreviviam a algo que colocava em risco suas vidas, meu pai sempre dizia: “os anjos estavam de plantão”. Numa ocasião, uma amiguinha da vizinhança, acometida por pneumonia, veio a falecer aos 6 aninhos. Papai nos despertou na madrugada para comunicar o ocorrido e nos confortar. Então eu perguntei ao papai por que os anjos das crianças não a protegeram? Ele ficou pensativo, e com voz meio engasgada respondeu: “esta noite, os anjos não estavam de plantão, filha”. Então, olhamos para a imagem do quadro que representava o “anjo da guarda das crianças”, em destaque na parede do quarto e ficamos em completo silêncio, sem conseguir explicar o que tinha acontecido.
Desde então, cresci com o aquela certeza de que as crianças têm um “anjo da guarda” que as protege dos perigos com a parceria dos seus pais, “os primeiros protetores”, como dizia papai. Mas, com o passar dos anos, tive a nítida impressão de que os “anjos da guarda” não estão mais podendo contar com uma boa parcela de seus parceiros na proteção das crianças.
Infelizmente, não é apenas uma impressão. Os dados confirmam que os “anjos da guarda das crianças” estão sendo banidos da terra. Todos os dias, desde o início do processo de isolamento social por causa da pandemia da covid-19, diversos relatórios técnicos, boletins científicos e atlas da violência no Brasil como este do fórum de segurança 2020 (https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/08/atlas-da-violencia-2020-infografico.pdf) indicam crescimento assustador da violência contra mulheres e crianças.
O ambiente doméstico parece nunca ter sido tão ameaçador para mulheres e crianças como nos últimos tempos. O lugar que deveria ser o referencial de segurança e proteção tem se transformado em espaço de tortura, espancamento e homicídio/feminicídio de crianças e mulheres. O lar da família que deveria ser o lugar por excelência de acolhimento e ternura fraterna, tem se transformado em verdadeiras câmaras de tortura e em ambientes de reconstituição dos crimes mais bárbaros e covardes que a humanidade já produziu.
Todos os dias se repetem histórias como a do pequeno Henry, assassinado em 08 de março pelo padrasto com participação da própria mãe, e da pequena Ketelen, torturada até a morte pela mãe e a madrasta no dia 26 de março. Ambos os casos no Rio de Janeiro com crianças que tinham apenas 6 aninhos, com ossinhos em formação e os órgãos vitais em processo de desenvolvimento. De acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria (https://www.sbp.com.br/departamentos-cientificos/endocrinologia/graficos-de-crescimento/) existe uma tabela de peso e altura que avalia as crianças em suas etapas de crescimento. De acordo com esta tabela, as crianças Henry e Ketelen estariam por volta de um metro de altura e uma média de 16 a 20 quilos de peso. Esta noção é importante para se entender o grau de covardia da violência contra as crianças.
Empiricamente, a primeira constatação que vêm à nossa mente diante tamanha covardia é aquela velha indagação: “porque não bate em gente do seu tamanho?” Bater em gente ou em animal, ou em qualquer ser vivo, não é atitude humana nem religiosa, nem ética, nem moral em nenhuma sociedade ou civilização. Nenhuma forma de violência pode ser tolerada nem justificada. Menos ainda a violência covarde contra crianças tão pequenas e indefesas. Humano, religioso, político, cultural e socialmente correto seria assegurar o seu pleno desenvolvimento e protegê-las de todo tipo de violência física, psicoemocional, simbólica, classista, racista, misógina, xenófoba, e assim por diante.
A Declaração Universal dos Direitos da Criança, adotada pela Assembleia das Nações Unidas de 20 de novembro de 1959 e ratificada pelo Brasil, em seus 10 princípios universais, assegura à todas as crianças:
Princípio 1º – A criança gozará todos os direitos enunciados nesta Declaração. Todas as crianças, absolutamente sem qualquer exceção, serão credoras destes direitos, sem distinção ou discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição, quer sua ou de sua família.
Princípio 2º – A criança gozará proteção social e ser-lhe-ão proporcionadas oportunidade e facilidades, por lei e por outros meios, a fim de lhe facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e normal e em condições de liberdade e dignidade. Na instituição das leis visando este objetivo levar-se-ão em conta, sobretudo, os melhores interesses da criança.
Princípio 3º – Desde o nascimento, toda criança terá direito a um nome e a uma nacionalidade.
Princípio 4º – A criança gozará os benefícios da previdência social. Terá direito a crescer e criar-se com saúde; para isto, tanto à criança como à mãe, serão proporcionados cuidados e proteção especiais, inclusive adequados cuidados pré e pós-natais. A criança terá direito a alimentação, recreação e assistência médica adequadas.
Princípio 5º – À criança incapacitada física, mental ou socialmente serão proporcionados o tratamento, a educação e os cuidados especiais exigidos pela sua condição peculiar.
Princípio 6º – Para o desenvolvimento completo e harmonioso de sua personalidade, a criança precisa de amor e compreensão. Criar-se-á, sempre que possível, aos cuidados e sob a responsabilidade dos pais e, em qualquer hipótese, num ambiente de afeto e de segurança moral e material, salvo circunstâncias excepcionais, a criança da tenra idade não será apartada da mãe. À sociedade e às autoridades públicas caberá a obrigação de propiciar cuidados especiais às crianças sem família e aquelas que carecem de meios adequados de subsistência. É desejável a prestação de ajuda oficial e de outra natureza em prol da manutenção dos filhos de famílias numerosas.
Princípio 7º – A criança terá direito a receber educação, que será gratuita e compulsória pelo menos no grau primário. Ser-lhe-á propiciada uma educação capaz de promover a sua cultura geral e capacitá-la a, em condições de iguais oportunidades, desenvolver as suas aptidões, sua capacidade de emitir juízo e seu senso de responsabilidade moral e social, e a tornar-se um membro útil da sociedade. Os melhores interesses da criança serão a diretriz a nortear os responsáveis pela sua educação e orientação; esta responsabilidade cabe, em primeiro lugar, aos pais. A criança terá ampla oportunidade para brincar e divertir-se, visando os propósitos mesmos da sua educação; a sociedade e as autoridades públicas empenhar-se-ão em promover o gozo deste direito.
Princípio 8º – A criança figurará, em quaisquer circunstâncias, entre os primeiros a receber proteção e socorro.
Princípio 9º – A criança gozará proteção contra quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração. Não será jamais objeto de tráfico, sob qualquer forma.
Não será permitido à criança empregar-se antes da idade mínima conveniente; de nenhuma forma será levada a ou ser-lhe-á permitido empenhar-se em qualquer ocupação ou emprego que lhe prejudique a saúde ou a educação ou que interfira em seu desenvolvimento físico, mental ou moral.
Princípio 10 – A criança gozará proteção contra atos que possam suscitar discriminação racial, religiosa ou de qualquer outra natureza. Criar-se-á num ambiente de compreensão, de tolerância, de amizade entre os povos, de paz e de fraternidade universal e em plena consciência que seu esforço e aptidão devem ser postos a serviço de seus semelhantes.
Em resumo, a Declaração Universal dos Direitos da Criança, recorda a todas as sociedades que o princípio básico para se garantir uma sociedade justa, humanizada e respeitada, se dá a partir da forma que ela (a sociedade, que somos todo/as nós) trata suas crianças. Portanto, toda e qualquer forma de violência contra crianças é crime covarde que deve ser identificado, denunciado e punido. Para isso, precisa da atenção permanente de toda a sociedade numa atitude consciente de “guarda” e proteção, como os “anjos da guarda das crianças” em plantão ininterrupto. Nenhuma forma de violência contra a criança se justifica e nem pode ser tolerada. A denúncia imediata é uma forma de posicionamento consciente em defesa da criança e da sociedade.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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