Por Gustavo Soranz[1] e Erlan Souza[2], especial para o Atual
Nessa terça-feira, 12, perdemos Feliciano Pimentel Lana. Ele faleceu em casa, na comunidade São Francisco, em São Gabriel da Cachoeira, de uma parada cardiorrespiratória. Há suspeita de que seja mais uma vítima do novo coronavírus.
Ele era Desana, do grupo Kenhiporã ou ‘Filhos (dos desenhos) do sonho’. Seu nome original era Sëbé. Nasceu em 3 de janeiro de 1937, na aldeia São João Batista, rio Tiquiê, município de São Gabriel da Cachoeira. Seu pai, Manuel Lana, era Desana, sua mãe, Paulina Pimentel, era Tukano. Sëbé falava as duas línguas. Seu pai era Kumu – xamã-rezador conhecedor da mitologia e das encantações de proteção e cura – e Bayá – um chefe de cerimônia. Na comunidade ele ouviu dos mais velhos as histórias da origem do mundo e dos homens. Foi um grande narrador da cultura de seu povo, e sempre colaborou com pesquisadores de grupos indígenas da família linguística Tukano do Alto Rio Negro.
Aos onze anos de idade ele saiu da comunidade Desana de São João Batista para estudar no internato salesiano de Pari-Cachoeira, onde foi batizado pelos missionários salesianos com o nome Feliciano. Na missão salesiana ele aprendeu a língua-portuguesa e conheceu as técnicas de desenho. No internato Feliciano foi aluno do padre Casimiro Béksta, lituano que viveu no Alto Rio negro entre as décadas de 1950 e 1970. Após algum tempo na missão, e a despeito de todo o esforço dos salesianos em acabar com a cultura indígena, Casimiro passou a se interessar pelas histórias mitológicas e pelo conhecimento ancestral dominado pelos mais velhos.
Com dificuldade em acessar esse conhecimento diretamente com os anciãos, que diziam ter esquecido os mitos, Casimiro se aproximou de seus jovens alunos a quem entregou gravadores de áudio, câmeras fotográficas e material de desenho. Com esses recursos em mãos esses jovens passaram a registrar os mitos contados por seus antepassados e também os conhecimentos tradicionais sobre proteção e cura. Entre os alunos que se lançaram a essa tarefa de registrar as histórias e a mitologia indígena que até ali eram preservadas pela cultura oral estavam Álvaro Tukano, Gabriel Gentil e Feliciano Lana.
Com dezesseis anos de idade Feliciano passou a desenhar os mitos Desana com o incentivo do padre Casimiro. Os desenhos chamaram a atenção de Luís Lana, seu primo, que notou que Feliciano estava misturando elementos Desana com os de outras tribos. Então Luís achou que era hora de registrar as histórias contadas pelos velhos. Ele então passou a anotar com papel e lápis os mitos narrados por seu pai. Desse trabalho resultou o livro Antes o mundo não existia – mitologia dos antigos Desana-Kehíripõrã, escrito por Luiz Lana e seu pai Firmiano Lana, então líder do grupo. O livro traz ilustrações da mitologia Desana feitas por Feliciano Lana e por Luiz Lana. A primeira edição do livro é de 1980.
Feliciano continuou desenhando os mitos indígenas e a organização social do seu povo. Seus desenhos criaram uma narrativa gráfica para os sonhos e o imaginário do Alto Rio Negro. Enquanto isso, em Manaus, Márcio Souza dirigia o Teatro Experimental do Sesc, popularmente conhecido como TESC, e estava interessado em explorar a mitologia indígena do Alto Rio Negro, a partir da aproximação com a pesquisa realizada pelo padre Casimiro Béksta na região. Em 1974 o TESC monta A paixão de Ajuricaba, sobre a luta dos indígenas contra os colonizadores europeus e, em 1975, monta Dessana Dessana, de Márcio Souza e Aldisio Filgueiras.
Para aprofundar a compreensão do mito para essa montagem, o grupo programou um seminário com especialistas na temática indígena, organizado pelo próprio Casimiro Béksta, mas também com a colaboração de Neide Gondim, Renan Freitas Pinto, Ribamar Bessa Freire, entre outros. Nesse mesmo movimento podemos destacar a realização do documentário O começo antes do começo, dirigido por Márcio Souza e Roberto Kahané e produzido pela Batoque cinematográfica, em parceria com a TV Educativa do Amazonas e apoio da cinemateca do Museu de Arte Moderna do RJ e de Luiz Maximino de Miranda Correa, filmado entre 1971 e 1972. O documentário traz o padre Casimiro contando o mito da criação do mundo dos povos do Alto Rio Negro e é ilustrado por desenhos de Feliciano Lana.
O libreto da peça Dessana Dessana surgiu a partir do registro do mito da origem do mundo escrito por Feliciano Lana. Ele veio a Manaus e colaborou na montagem da peça, com sugestões sobre a encenação dos rituais e elaborando o grafismo utilizado na cenografia.
Feliciano Lana era narrador, escritor e desenhista. Foi um dos mais importantes artistas indígenas contemporâneos do Brasil. Seus desenhos rodaram o mundo, participando de mostras e exposições em diversos museus e galerias. Sua obra artística é fundamental para o registro e a preservação da cultura indígena do Alto Rio Negro. São a expressão de um imaginário e de um conhecimento ancestral sobre a origem do mundo e dos homens.
Descanse em paz, Feliciano.
[1] Documentarista. Atualmente lidera o Núcleo Criativo Rizoma Audiovisual, onde desenvolve projetos que abordam temas ligados a questões indígenas do Alto Rio Negro.
[2] Antropólogo. Atualmente desenvolve o projeto de longa-metragem A ciência do sopro, sobre a prática do xamanismo de grupos Tukano na cidade de Manaus.