Em um contexto de crise, como este em que vivemos, importa refletirmos sobre o valor incalculável da dignidade humana, pois muitas vezes pode-se usar a crise para justificar práticas que vão contra a humanidade das pessoas. Por exemplo, entre alguns analistas há uma justa preocupação em relação ao avanço do autoritarismo em países cujos governos de tendência autoritária abusam de medidas tomadas em épocas de emergência, visando centralizar ainda mais o poder e neutralizar a oposição. A crise do coronavírus pode acelerar esta onda autoritária.
A falta de clareza e o estado de confusão numa época de crise podem corroborar medidas que promovem valores secundários e deixam nas sombras valores prioritários, como a dignidade da pessoa humana. Um governo confuso ou pautado por interesses escusos pode vislumbrar, por exemplo, que a economia é mais importante do que o bem-estar do conjunto dos cidadãos de uma nação. Isto já é insinuado com evidencia no Brasil.
É preciso dizer que o valor da dignidade humana encontra as suas origens mais remotas na Bíblia, quando esta afirma que o homem é criado à imagem e semelhança de Deus. No século XVII, o conceito de dignidade humana ganha independência em relação à religião, numa ocasião em que a corrente filosófica dos jusnaturalistas defende a igualdade entre todos os seres humanos, por eles serem portadores da razão.
Emmanuel Kant (1724-1804) aprofunda esta concepção, argumentando que o ser humano é digno porque, sendo racional, tem capacidade de determinar a si mesmo (autonomia). Para Kant, toda pessoa tem um valor intrínseco que não pode ser quantificado. Desta forma, todas as pessoas devem ser tratadas como um fim em si mesmo e não como meio, pois, enquanto racionais, possuem uma dignidade que as qualificam dentro da raça humana.
Para que os horrores da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) não se repetissem na história, a Assembleia das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), com os seus 30 artigos perpassados pela ideia da dignidade humana. No Brasil, a Constituição Brasileira (1988) assume a prerrogativa da dignidade humana como a base de constituição de todos os demais direitos (Art. 1º, Inciso III).
A presença da ideia de dignidade humana como fundamento de múltiplos documentos nacionais e internacionais indica a importância de se valorizar o ser humano, não permitindo que o seu valor seja anulado em nenhuma situação. De fato, o reconhecimento da dignidade inerente à todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o alicerce da liberdade, da justiça e da paz no mundo.
As medidas tomadas em épocas de crise, como a do coronavírus, também servem para verificar o nosso grau de respeito ou de menosprezo pela dignidade humana. Trata-se de perguntar como a nossa sociedade tem procurado concretizar, nesta época de crise, este ideal que norteia a grande maioria das nações do planeta. Os direitos fundamentais, que expressam o ideário da dignidade humana, têm sido promovidos ou negligenciados pela sociedade brasileira?
Poucos setores escapam dos efeitos da crise do covid-19, trazendo algum tipo de prejuízo, mas esta crise também pode nos apontar quais os valores sobre os quais construímos a nossa identidade cultural, os nossos horizontes e nossos sonhos como nação. Se a pessoa humana não é reconhecida como um valor em si, mas abandonada diante das tragédias da vida, então não estamos evoluindo para uma sociedade melhor, onde se possa viver com mais plenitude o reduzido intervalo de tempo que nos é dado neste planeta.
Em uma sociedade que busca avançar rumo a um estágio mais civilizado não se tolera posturas que substituem o valor da dignidade humana por qualquer outro valor, seja ele econômico, financeiro, moral ou religioso, pois o próprio sentido de viver em sociedade inclui a prática da cooperação para proteger e promover a vida humana.
Nesta perspectiva, não há espaço para receitas neoliberais, que buscam restringir as funções sociais do Estado. Pelo contrário, os governos mais conscientes e responsáveis se mobilizam para injetar recursos nos diversos setores da sociedade, promovendo os ideários do bem-comum e da cidadania. A dignidade humana não pode ficar à mercê dos mercados sedentos de lucros, sendo necessária a implementação de iniciativas que visem proteger a vida das pessoas, sobretudo aquelas esferas mais vulneráveis da sociedade.
É preciso ter em conta que nestas iniciativas, os Estados não devem priorizar a ajuda às grandes empresas, liberando bilhões de reais à toque de caixa, enquanto o escasso apoio aos mais pobres é adiado indefinidamente. Espera-se que o governo não enrole o pagamento dos magros R$ 600 às pessoas na informalidade, sob o argumento de que isso se caracterizaria como uma verdadeira “farra fiscal”. Isto seria uma perversidade que só reforçaria o autoritarismo e o desprezo para com a vida, contrariando a acepção de dignidade humana.
A crise da pandemia não pode se converter em benesses concedidas às grandes empresas e bancos que buscam a todo custo manter os seus rendimentos enquanto as pessoas que mais precisam padecem à mingua e sem proteção social. Assim, a crise seria usada como forma de ampliar as desigualdades já existentes, fazendo um país ainda mais injusto e mais intolerante.
O covid-19 escancara a urgência de se universalizar o acesso aos serviços de saneamento básico, democratizar o acesso à terra e à moradia, otimizar o sistema público de saúde, aprimorar as políticas de educação para os mais pobres, garantir uma renda mínima para todos os cidadãos e alterar o nosso paradigma relacional com o meio ambiente. Os passos nesta direção somente serão dados mediante uma decidida mobilização do Estado e de toda a sociedade, através de políticas públicas que procurem melhorar as condições de vida para todas as pessoas do campo e das cidades.
Que a dignidade humana não seja privilégio de alguns poucos que se consideram “dignos”. É necessário que a dignidade não seja vista como um título de nobreza concedido a um seleto grupo social. Valorizar a vida humana é reconhecer que todos os que participam da raça humana portam um valor incomensurável e inalienável. Nesta perspectiva, os interesses corporativos das classes dominantes não podem ser referências para clarear o nosso horizonte, nem suporte para fundamentar a sociedade que queremos.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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