Por Walter Porto, da Folhapress
SÃO PAULO – “Olha que lindo é aqui”, diz Ailton Krenak enquanto filma pelo celular as árvores do lugar onde se sentou para dar esta entrevista. É uma parada prosaica de beira de estrada, onde ele estacionou em meio à viagem que fazia de Minas Gerais até o Rio de Janeiro. Dali partiria para a Holanda, em sua primeira viagem internacional após a pandemia, no começo do mês.
Krenak apresentaria aos europeus suas ideias para adiar o fim do mundo, expressão popularizada pelo título de seu primeiro livro na Companhia das Letras, lançado em 2019.
De lá para cá, a coletânea virou uma febre comercial, rendendo duas edições reimpressas 16 vezes, e continuou com “A Vida Não É Útil”. As obras ampliaram o alcance de uma liderança indígena já reconhecida por articulações nacionais desde os anos 1970.
Agora o tríptico se encerra com “Futuro Ancestral”, que reúne reflexões sobre a educação de crianças, o colonialismo e o planejamento urbano, sempre partindo de cosmogonias indígenas tornadas acessíveis aos leitores brancos.
Nesta entrevista, Krenak discute porque prefere pensar no presente que no futuro e pensa a efetividade da política institucional – ele foi um dos nomes lembrados para o prometido Ministério dos Povos Originários no governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Folha – ‘Futuro Ancestral’ brinca com a questão temporal, falando que a ideia de futuro é uma ilusão branca, mas também expressando com frequência a ideia de ‘adiar o fim do mundo’. Pode explicar melhor como enxerga o conceito de futuro?
Ailton Krenak – A ideia de fazer uma comunicação aberta com outra cultura, outros sujeitos, obriga você a criar recursos narrativos que alcancem o outro. Se eu ficar ensimesmado em uma cosmovisão na qual o futuro é uma balela, não vou conversar com ninguém. Todo mundo ao meu redor acredita no futuro.
Se você não fizer sua autodescrição quando vai dar uma palestra, o cego não vê. Como eu vou falar com você sobre o futuro se eu suprimir a palavra futuro? Não quer dizer que eu acredito nele, mas que questiono a razão que instituiu uma narrativa global, ampla, em que há o mesmo futuro para mim, para você e para o chinês. Isso é uma besteira.
Se tem alguma coisa que pode corresponder a essa ideia de futuro instituída socialmente, temos que considerar que ele é ancestral, porque só pode ter concretude a partir do que já foi. A materialidade dele é o ontem, não é o agora – e quando o agora for ontem, fechamos a parábola de um futuro ancestral.
Pode parecer especulação filosófica, mas é também a afirmação de um lugar de pensar o mundo aqui e agora. Igual à canção de Gilberto Gil.
Folha – Isso embute uma proposta de salvar o meio ambiente e preservar os povos originários priorizando ações imediatas acima de planos para um futuro que talvez não se concretize?
Ailton Krenak – Do ponto de vista climático, muito mais que a ideia de salvar qualquer coisa é a ideia de evitar nossa extinção. O Homo sapiens, a espécie, está entrando em extinção. Não são os índios. Eu não estou salvando os índios. Estou dando um toque de que, se a gente não se cuidar, vamos todos para a metástase.
Com relação ao clima, ou a gente para tudo agora ou a gente torra. O secretário das Nações Unidas, Antônio Guterres, disse na COP27 que estava decepcionado porque, a considerar a posição dos governos que foram para Sharm el-Sheikh, no Egito, vamos marchar a passos largos para o inferno. Parece letra de rock ‘n’ roll brabo.
Não é brincadeira, não. Ele só não jogou a toalha, mas o que está dizendo é que não tem mais prazo para conversa mole. É aqui e agora.
Folha – Você diz no livro que não acredita mais na atuação em partidos ou sindicatos e afirma que, quando se começa a cobrar impostos, alguma coisa já deu errado. Instituições como essas não podem ajudar a organizar a mobilização por uma causa?
Ailton Krenak – Partido é um organismo com configurações implícitas. Nunca tive relação com partido, organizei o movimento indígena, anti-partido. Em 1995, renunciei à coordenação para que não virasse partido. Eu e o Batman temos um dispositivo que, quando tudo fica muito ruim, a gente aperta o botão.
Folha – Na COP27, Lula foi saudado como uma estrela, alguém com potencial de ter uma atuação positiva em termos ambientais diante de um mundo preocupado com a Amazônia. O próximo governo tem uma boa oportunidade de levar o Brasil a uma posição melhor nesse aspecto?
Ailton Krenak – Seria uma injustiça atribuir essa responsabilidade ao Brasil. Estamos saindo de uma tragédia política tão grande que cuidar das nossas feridas já seria heroico.
Lula foi saudado lá porque o mundo está pelado com a mão no bolso. É como se ele fosse a aspirina do momento, mas isso só mostra que o mundo está realmente uma merda.
Folha – Lula também aventa a ideia de um ministério específico voltado aos povos originários. Isso vai ser efetivo para organizar as políticas dessa área?
Ailton Krenak – Foi muito corajoso ele ter feito esse anúncio, inclusive num momento em que a vitória dele ainda não estava decidida. De lá para cá, ele radicalizou, está criando o ministério e isso é um sinal muito amplo para todo mundo.
Quando você diz que vai empoderar os povos originários, diz que vai limitar o genocídio e a ação deliberada de destruir florestas e ecossistemas que se implantou no Brasil nos últimos anos. Significa também um comprometimento pessoal do presidente de que ele não vai mais cometer Belo Monte.
Folha – Então você não desistiu completamente da política institucional.
Ailton Krenak – A política institucional é a única maneira de assegurar que a gente não vire uma barbárie total, com pirataria e invasões feito o que Donald Trump promoveu no Congresso dos Estados Unidos e o que os sujeitos que tomaram a política brasileira tentaram fazer levando tanques militares para dar rolezinho em volta do Congresso.
As instituições precisam ser responsáveis, o que não quer dizer que todo mundo tem que se meter na política. Não é por isso que você e o Ailton têm que se meter em política e criar um partido. Sair por aí com o apelido de centrinho.
Folha – Em outro trecho dos seus textos, você diz que ‘o colonialismo causou um dano quase irreparável ao afirmar que nós somos todos iguais’. O que quer dizer?
Ailton Krenak – Somos 8 bilhões de pessoas no planeta hoje. Se continuarmos todos fiéis ao propósito “somos todos iguais”, vamos ter que dar um carro para cada pessoa, um apartamento, uma casa no campo, férias em outro país. Não tem sentido dizer que somos iguais quando príncipes sauditas embarcam carros de luxo em aviões para passear na Europa.
Enquanto eles escravizavam povos no mundo inteiro, as declarações de igualdade só cresciam. No século 20, a propaganda de igualdade é descarada. É um plasma que cobre tudo, as injustiças, o sexismo, o racismo. Todo tipo de segregação e sacanagem acontece sob o manto tacanho da igualdade. Somos radicalmente diferentes. É uma tremenda embromação.