A frase “estamos no mesmo barco” numa referência à pandemia causada pelo novo coronavírus (Covid-19), tem sido recorrente no mundo inteiro. Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, o mais alto nível de alerta da Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional. Em 11 de março de 2020, a Covid-19 foi caracterizada pela OMS como uma pandemia. Desde então, já foram oficializadas 771.635 mortes ao redor do mundo.
O Brasil é um dos recordistas mundiais em mortes, já contabilizamos 110.008 óbitos decorrentes da contaminação. Temos hoje 3.412.770 casos confirmados da doença de acordo com a contagem em tempo real do Painel da Pandemia (www.paineldapandemia.geosensori.com.br). Diante destes dados mundiais, podemos crer que sim, “estamos no mesmo barco”. No entanto, em espaços diferentes. Os melhores lugares com vistas privilegiadas e espaços confortáveis estão exclusivamente reservados a uma elite parca que lamenta algumas perdas econômicas e encara a pandemia como uma “gripezinha”. Já as classes inferiores estão confinadas nos porões insalubres destes navios. como outrora vieram nossos antepassados africanos, escravizados no continente americano, e mais tarde, no início do século passado, os miseráveis migrantes europeus e asiáticos que chegaram em busca de terra e trabalho. Novamente estamos num mesmo barco e não sabemos em que porto iremos atracar depois desta pandemia que mudará os rumos de nossa história.
O barco da Amazônia está abarrotado com migrantes, refugiados e povos indígenas. Proporcionalmente é a região mais afetada pela pandemia no Brasil. Ao mesmo tempo, é a região menos preparada no campo da saúde para responder, de forma emergencial, às demandas por unidades de terapia intensiva, respiradores artificiais e exames que detectam a contaminação. Este último item faz com sejamos a região com maior quantidade de subnotificações da doença. Os epidemiologistas da região acreditam que para cada caso diagnosticado existam pelo menos 14 casos subnotificados fazendo com que as mortes disparem de forma descontrolada e desesperadora.
Historicamente as políticas de saúde apresentaram déficit na Amazônia por uma série de eventos que envolvem especialmente um cenário político de corrupção e desvios de recursos para esta finalidade. A pandemia veio revelar o descaso político pela saúde de determinadas categorias sociais na região, de modo especial os migrantes, refugiados e os povos indígenas atingidos de forma acelerada pela contaminação.
Ao redor de 45% dos povos indígenas de toda Pan-Amazônia vivem nas cidades que concentram cerca de 83% da população. Deslocados de seus territórios de forma eminentemente compulsória, são historicamente empurrados para as periferias das cidades onde vivem em meio à pobreza sem acesso aos direitos básicos. Ali, se juntam aos milhares de refugiados e migrantes internos e internacionais nas mesmas condições de miséria, subemprego e subcidadania.
As distâncias e os contextos transfronteiriços dificultam o acesso à saúde, mas, não impede que a contaminação chegue de forma avassaladora. A vulnerabilidade dos migrantes e dos indígenas tem feito destes grupos os mais frágeis nos processos de contaminação com morte rápida. Muitos nem chegam a ser diagnosticados.
Os povos indígenas, biologicamente mais vulneráveis às doenças infecciosas, fazem circular entre eles diversas fórmulas com “receitas de ervas curandeiras”, como as definem, que combinam mel, alho, folhas e flores de jambú. São infusões conhecidas ancestralmente por seus curandeiros, pajés e xamãs, que ganham visibilidades e popularidade neste contexto de pandemia. As evidências apontam que estas receitas com plantas medicinais desenvolvem anticorpos e fortalecem o aparelho respiratório, desacelerando o avanço do ciclo viral no organismo.
Entre os migrantes e refugiados, especialmente haitianos, venezuelanos, cubanos e peruanos aparecem profissionais da área da saúde desqualificados nos processos migratórios pela dificuldade de revalidação dos diplomas. Agentes comunitários de saúde, médicos(as), enfermeiros(as), auxiliares, estudantes em fase avançada das carreiras médicas, tornam-se visibilizados e se apresentam como voluntários para somarem às equipes de vigilância epidemiológica, às agências internacionais como Médicos Sem Fronteiras e outras instituições que vão surgindo para o enfrentamento à epidemiologia. Muitos profissionais ou estudantes migrantes e refugiados contribuem para propiciar capacitação e ampliação das equipes de profissionais que atuam em vigilância epidemiológica, elevando a capacidade de análise de informações e de execução de ações de enfrentamento à epidemia.
Em toda Amazônia aumentam os casos de pessoas contaminadas que permanecem confinadas em suas casas, ora porque não são devidamente diagnosticadas, ora porque não existem hospitais para onde levar os doentes. Não fossem as iniciativas locais com terapias alternativas, por iniciativas de grupos de mulheres que lidam com chãs, homeopatias e fórmulas artesanais que fortalecem o sistema imunológico, a tragédia seria muito maior.
Intermediadas pelas redes sociais, auxiliadas pelos mais jovens e adolescentes que dominam as tecnologias de acesso popular, todos os dias, as mulheres migrantes, refugiadas e indígenas, fazem circular terapias alternativas que ajudam no enfrentamento à covid-19 e seus sintomas. Pequenos vídeos ou áudios curtinhos explicam como fazer exercícios para fortalecer os pulmões e o sistema respiratório, como preparar os chás com as ervas medicinais, explicam a importância da hidratação, dos exercícios físicos dentro de casa, a importância de pegar sol pela manhã e de como cuidar dos anciãos e protege-los da contaminação. Fazem circular iniciativas de proteção às mulheres contra a violência doméstica, ensinam como denunciar e buscar socorro, criam redes de solidariedade e acolhimento. Usam as redes sociais para fazer circular as informações e experiências de cura.
Concluímos que no ‘barco da Amazônia’, onde estamos todos, pobres, migrantes, refugiados e povos indígenas, mesmo confinados nos porões, como outrora estiveram nossos antepassados, não deixamos morrer, junto com a covid-19, os conhecimentos, o protagonismo, a esperança e as grandes lições de solidariedade que transpõem os continentes neste tempo tão incerto de pandemia. Oxalá seja um tempo de aprendizado que nos torne pessoas melhores, mais solidárias e mais humanizadas.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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