Da Folhapress
SÃO PAULO, SP – Depois de todos terem esquecido sua identidade, o Demolidor volta para Nova York e para o exercício da advocacia, mas logo encontra um cenário que o assusta. Wilson Fisk, o Rei do Crime, seu arqui-inimigo, foi eleito prefeito da cidade.
Já na primeira cena, Matt Murdock, verdadeira identidade do herói, pergunta a um amigo como os eleitores escolheram o vilão. “Os outros candidatos eram a mesma coisa de sempre. Fisk parecia diferente. Ele lançou uma candidatura independente, sem filiação partidária, não tinha o rabo preso com ninguém”, responde o amigo.
A passagem está no volume 17 da HQ do Demolidor que acaba de chegar às bancas, pela editora Panini, e já causou uma polêmica entre fãs. Em um quadro no meio da história, há uma manifestação de partidários. Na versão brasileira, dois deles seguram placas que dizem “Fisk mito” -numa clara referência ao presidente Jair Bolsonaro (PSL).
No original em inglês, as placas diziam “Fisk rules”, que poderia ser traduzido como “Fisk governa” ou “comanda”. O assunto tomou os fóruns de quadrinhos nos últimos dias -boa parte elogiava a solução, mas outros afirmavam que o tradutor tentou inserir sua ideologia na história.
A Panini, em nota, afirmou que o cartaz não faz referência a nenhum político brasileiro. “A editora esclarece que a tradução se apropria do termo ‘mito’ para se referir a alguém que as pessoas admiram, como é o caso do personagem Wilson Fisk.”
O tradutor da edição, Paulo França, explica melhor sua decisão. Ele diz que traduzir “rules” por “governa” seria pouco natural em português -e que escolheu “mito” pensando na idolatria que os seguidores têm pelo personagem.
“Temos um paralelo de um político que é idolatrado no Brasil, achei que seria algo próximo do leitor. Apelidaram o sujeito [Bolsonaro] de mito, mas ele não se apropriou da palavra”, afirma.
“Mas não é uma alusão direta. É uma tradução aberta à interpretação. O pessoal que é eleitor do Bolsonaro está doído achando que é uma comparação com o vilão –mas pensei muito mais na questão da idolatria do que numa associação tão direta [de associá-lo a um vilão]. Comparação direta é algo meio raso.”
Ainda que com muitas diferenças -o presidente americano não é um mafioso do submundo nova-iorquino como Fisk- a história original faz uma clara associação entre o inimigo do Demolidor e Donald Trump.
Na série da Netflix, por exemplo, o Rei do Crime se safa de um processo judicial e ataca a imprensa. Diz que o povo foi manipulado por “fake news” dos jornalistas, que tentaram convencer todos de que ele era um criminoso. Tudo porque ele, Wilson Fisk, “desafia o sistema”.
É o próprio Fisk quem espalha notícias falsas. Nos quadrinhos, o herói conseguiu junto à Suprema Corte que os super-heróis tivessem legitimidade no sistema legal. Mas o vilão quer criminalizá-los.
“Impossível não fazer uma associação com a notícias [das ‘fake news’] espalhadas por WhatsApp [pela campanha de Bolsonaro]”, diz França. “Vejo paralelos, mas é a minha visão. Eu não coloquei uma alusão direta a nenhum político do Brasil.”
Por exemplo, um grupo de policiais é assassinado e o prefeito culpa o Justiceiro. Em dado momento, o Homem Aranha faz um autorretrato em um prédio acompanhado da frase “Não sou um criminoso”.
“A cidade está em polvorosa. As pessoas estão irritadas. Elas querem segurança… e Fisk está lhes prometendo isso e mais”, diz um personagem da HQ.
“Gostei da solução”, diz o tradutor Fábio Bonillo. “Não é preguiçosa. Só o seria se a HQ fosse do começo do século, aí sim seria ridículo forçar uma associação. O tradutor vive e trabalha em um período histórico do qual não dá para fugir.”
Vale dizer que não há na tradução de Paulo França, contudo, nenhuma associação entre os heróis e o PT.