Por Valter Calheiros, especial para o ATUAL
MANAUS – No amanhecer do dia 31 de dezembro de 2018, embarquei em uma catraia movida a remo pelo senhor Paulo, um dos últimos catraieiros da orla da Manaus Moderna e Educandos a persistir na relação do caboco amazônico com as águas dos rios como caminho e estrada. Navegar numa catraia é relembrar a história de nossos pais e avós, talvez sentir o que eles sentiam e um leve sabor da resistência de nossa cultura. Na orla do igarapé ancoram barcos regionais e canoas que aguardam por viagem ou por conserto nas oficinas flutuantes.
Na popa da canoa navegamos pela orla da Feira Manaus Moderna, Mercado Municipal Adolpho Lisboa, ponte e igarapé do Educandos. Registramos em fotos o comércio na beira do rio com a venda de peixes, verduras e frutas regionais em precárias condições de higiene. Na orla residem centenas de famílias que habitam velhos barcos, se acomodam embaixo da ponte ou nos paredões das ruas. No beiradão do Educandos, da Avenida Leopoldo Peres até a Praia da Ponta Branca, prevalecem as casas que não possuem rua revelando um amontoado de becos onde as famílias se acomodam como podem num risco iminente de incêndio como o ocorrido em 17 de dezembro de 2018 que desabrigou mais de 600 famílias.
Manaus é uma metrópole do Norte agraciada com imensa floresta, rios colossais, igarapés a entrecortar as ruas. No entanto, o retrato mostra uma cidade que carece de um porto e orla que nos remeta a boas lembranças e saudades da chegada e da partida, de um passeio e acolhimento caloroso acompanhado de um seja bem-vindo. Os registros somam-se às impressões de quem chegou a Manaus no final dos anos 70 junto com centenas de interioranos em busca de educação e trabalho, viveu ali e pôde sentir as condições insalubres e a falta de zelo em um espaço público que deveria ser referência e orgulho. Mas predomina um ambiente mergulhado no lixo, insegurança, infraestrutura precária, turismo que não oferece bons serviços aos visitantes e trabalhadores que carregam nas costas o peso muito além de sua capacidade física.
Outro registro é a condição da Ponte Padre Antonio Plácido de Souza, conhecida como Ponte do Educandos, inaugurada em 18 de outubro de 1975 pelo então prefeito Jorge Teixeira. Possuindo 340 metros de extensão é a principal via de circulação de veículos entre a zona sul e o centro da cidade. A ponte com estrutura fragilizada e manutenção ao longo do tempo esquecida, possui famílias que residem e trabalham há anos literalmente embaixo da estrutura. A questão tramita na Justiça e sua recuperação vem sendo sempre esquecida. A interdição para carros pesados não irá fazê-la voltar a ter boas condições para o uso da população. É um investimento necessário, urgente, antes que o pior aconteça no beiradão do Educandos. Esse é um dos desafios que apontamos ao novo governador do Amazonas, Wilson Lima e sua equipe.
Diante de um cenário que há anos se encontra abandonado, nos traz esperança ver o povo empenhado em realizar eventos para arrecadar doações de roupas e alimentos às famílias atingidas pelo incêndio. Mas, além disso, precisamos construir caminhos através de investimentos em políticas econômicas, sociais, educacionais, habitacionais, emprego e renda, meio ambiente e segurança pública que responda às mazelas que colhemos do fruto da corrupção e privilégios que predominou e ainda predomina no uso do dinheiro público.
Na perspectiva de um ano novo, não nos limitemos tão somente a empossar os governantes eleitos, é necessário diálogo e vigilância constante a partir dos seguimentos da sociedade, como Fóruns e Movimentos Sociais, Igrejas, Instituições de Ensino e Pesquisa, Imprensa e demais Meios de Comunicação, todos.
Que o incêndio nas casas do Educandos possa cultivar em nossos corações a generosidade sempre presente no povo amazonense em favor de crianças, adolescentes e suas famílias. É tempo de prevenir, do contrário o silêncio nos elegerá como cúmplices.
*Valter Calheiros é educador, atuante em projetos sociais na defesa e promoção dos direitos de criança e adolescente/pesquisador e ativista ambiental do Fórum das Águas e Movimento Socioambiental SOS Encontro das Águas.