Um dos mais cruéis, bizarros e estranhos assaltos feitos a um desportista ocorreu na semana passada (07), na África do Sul, quando tentaram serrar e roubar as duas pernas do triatleta Mhlengi Gwala.
Gwala estava se preparando para uma competição que será realizada neste fim de semana. Eram três da manhã, na cidade de Durban, onde o Brasil empatou (0 a 0) com Portugal na Copa de 2010. O jovem de 27 anos estava pedalando, subindo um barranco perto da estrada de Rick Turner, na altura do campus da Universidade de KwaZulu-Natal, a alguns quilômetros do morro do King Edward Hospital, local onde iria encontrar o colega e melhor amigo Sandile Shange. Há anos os dois treinam juntos.
Três homens armados abordaram o atleta. As armas serviram de tradutoras para o que queriam, pois os bandidos falavam um dialeto que Gwala não entendia. “Era uma linguagem engraçada. Não entendia as palavras. Eles não falavam zulu (uma das 11 línguas oficiais da África do Sul”, relatou.
Gwala entendeu que era um assalto e, por isso, começou a oferecer ao trio seu telefone celular, seu relógio, todo o dinheiro que possuía e até a sua estimada bicicleta. Os criminosos não se importaram com os objetos.
Foi quando ocorreu a brutalidade sem precedentes que chocou o mundo esportivo. Os malvados o arrastaram para os arbustos à beira da estrada. “Um me segurou pelas minhas costas. O segundo segurou minhas pernas. E o terceiro ligou a motosserra e começou a cortar minhas pernas”, contou Gwala.
No relatório policial, a descrição que até o mais polêmico roteirista de filmes de terror evitaria escrever: “Eles continuaram cortando a perna direita e quando chegaram ao osso, a motosserra ficou presa, porque não era tão afiada. Aí eles começaram a serrar a outra perna”.
O atleta poderia ter morrido durante a ação covarde se não tivesse ocorrido uma misteriosa intervenção que fez os sádicos fugirem. “Aquele que estava cortando parou e foi olhar alguma coisa. Eu não sei o que ele estava verificando. Mas então ele voltou e disse para os outros uma palavra que eu acho que significa – vamos – e então eles fugiram”, contou Gwala.
O triatleta ainda pegou o celular rejeitado pelos bandidos e tentou ligar para a polícia. Ninguém atendeu. Também não conseguiu falar com o amigo. “Percebi que tinha que rastejar até a estrada”. Cada centímetro do caminho exigiu esforço de quilômetros. Na beira da estrada, ele gritou por socorro. Foi resgatado por Themba Gumede, um segurança de uma empresa privada (Fidelity Security), que estava patrulhando a rodovia e levou o ferido para o hospital mais próximo.
Um dia antes de ficar sabendo da atrocidade cometida ao atleta sul-africano, recebi um trecho de uma entrevista da filósofa Marcia Tiburi. No vídeo de pouco mais de um minuto, Tiburi é provocativa: “Eu sou a favor do assalto. Eu penso assim: tem uma lógica no assalto. Eu não tenho uma coisa que eu preciso, eu fui contaminada pelo capitalismo. Você começa a pensar do ponto de vista da inversão… tem muitas coisas que são absurdas que se você olhar a lógica interna você sabe que seria justo dentro de um contexto tão injusto”.
Para os que não alcançam esse nível de abstração de Tiburi e não conseguem enxergar romantismo ou vingança contra o sistema, os ladrões não parecem nem um pouco com justiceiros sociais. Nem cada roubo, um ato de rebeldia e revolta contra o capitalismo. “Aqui embaixo”, criminosos são apenas criminosos e nenhuma lógica interna torna justo um ato injusto.
Numa “filosofia das vítimas”, os piores crimes podem ser resumidos a um roubo. O estupro rouba a autonomia de dizer não. A pedofilia rouba a inocência da infância. Os assaltantes dos cofres públicos roubam a confiança e a qualidade de vida do povo. E o assassino é o maior dos ladrões, pois rouba da vítima a oportunidade de desfrutar de tudo o que tem e de tudo o que poderia ter.
A tentativa de roubo das pernas de Mhlengi Gwala despertou uma benvinda reação. Foi criada uma “vaquinha” online (www.backabuddy.co.za) para arrecadar dinheiro para bancar o tratamento médico do atleta. Ele já passou por uma operação de cinco horas na perna direita. Os médicos evitam fazer qualquer previsão sobre o futuro dele.
Na primeira entrevista após a cirurgia, realizada do leito do hospital, chamou a atenção o fato de Mhlengi Gwala parecer o tempo todo contente. “As pessoas de todo o mundo estão rezando por mim”, explicou.
De fato, criminosos podem muito. Podem roubar objetos a que dedicamos esforço para adquirir, pertences com que temos ligação afetiva, podem assaltar temporariamente nossa sensação de paz e até partes do nosso corpo. Algumas coisas, entretanto, ninguém consegue roubar: o sentimento da solidariedade e, mesmo em meio a adversidades terríveis, a capacidade de sorrir.
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