Nesta semana fomos impactados pela declaração do presidente Jair Bolsonaro, salientado que não há fome no Brasil. Não seria surpresa se ele também dissesse que no Brasil não há injustiça social e não há desmatamento. A fala sobre a fome provocou a mobilização de inúmeros institutos de pesquisa, demonstrando que o presidente estava equivocado: segundo o DataSus (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde), ao menos 17 pessoas morrem por dia no Brasil por complicações provocadas pela falta de nutrientes necessários. Anualmente, 6,3 mil morrem no Brasil por desnutrição.
Estamos diante de um presidente desinformado ou perante um mandatário que não reconhece os grandes desafios do país como forma de fugir da responsabilidade de superá-los. Esta última hipótese parece ser a mais verdadeira, pois, de alguma forma, reconhecer implica comprometer-se. Ao não reconhecer o problema da fome, Bolsonaro demonstra a sua disposição em não criar políticas públicas para superar este flagelo. Trata-se, segundo esta racionalidade, de abandonar os mais pobres à sua própria sorte. Mais uma perversidade neoliberal e uma pequenez de espírito.
É possível relacionarmos esta situação com os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário em Manaus. Ao implantar, graças aos volumosos recursos públicos, 89,3% de cobertura de abastecimento de água na cidade de Manaus (SNIS 2017), a empresa privada que gere este serviço quer sinalizar a proximidade da sua universalização no município. No entanto, há elementos importantes por trás deste número, levando-nos a suspeitar da sua integridade. Num rápido passeio pela cidade podemos constatar que a qualidade dos serviços prestados (acessibilidade, potabilidade e continuidade) não é satisfatória na maioria dos bairros, principalmente naqueles que compõem a periferia manauense. Esta realidade foi confirmada recentemente pelo Procon-Manaus segundo o qual a empresa de água e esgoto ocupa o 2º lugar no ranking das empresas que mais recebem reclamações na cidade.
Para configurar a suposta universalização também é necessário perguntar se a mencionada estatística inclui como parte da cidade as centenas de aglomerados de palafitas construídos ao longo dos igarapés. É preciso questionar se a cidade das estatísticas incluem as inúmeras ocupações e favelas urbanas, que abrigam milhares de pessoas nas periferias de Manaus. A resposta é previsível: estes lugares não aparecem nos planos da cidade. Diante disso, é possível afirmar que os dados fornecidos pela empresa não representam a cidade real. Passando ao largo dos lugares mais pobres, os 89,3% de cobertura de abastecimento de água constituem uma grande ficção, inventada para esconder a realidade manauense. Esta estatística não retrata a Manaus profunda, caracterizada pela segregação social e pela ausência de saneamento básico, de escola, de saúde, em fim, ausência de Estado. Estes espaços urbanos não constam nos mapas da prefeitura nem nos planos da empresa Águas de Manaus, instituições que preferem ignorar estes lugares a fim de não se comprometerem com eles.
Além disso, é bom lembrar que a própria empresa chegou a reconhecer que somente 64% da população manauense está ligada ao sistema de abastecimento de água (dados de 2017). Muitas destas residências resolveram permanecer fora do sistema devido aos elevados preços dos serviços cobrados pela empresa. Se de um lado, o índice oficial de cobertura de água (89,3%) passa à margem da realidade de Manaus, de outro lado, ele tem uma função bem definida: esconder esta realidade, pois assim fica mais fácil de fugir da responsabilidade de equacioná-la. Trata-se de uma estratégia ideológica que visa anestesiar a opinião pública no que se refere à trágica situação dos serviços de saneamento básico na cidade de Manaus. Estamos diante de uma “universalização fake”, tanto no item do abastecimento de água quanto no aspecto que refere ao esgotamento sanitário.
Afirmar que não há fome no Brasil equivale a dizer que o abastecimento de água em Manaus está prestes a ser universalizado. A intenção é esconder ou abafar o sofrimento de milhares de pessoas causado por um Estado capturado por interesses financeiros e empresariais numa indiferença bárbara em relação às necessidades essenciais dos cidadãos mais pobres. Estamos nos distanciando cada vez mais da democracia e perdendo a oportunidade de aprofundar a nossa humanidade.
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