Por Leonardo Sanchez
SÃO PAULO – Na mitologia grega, Medusa era a mulher com cabelo de serpentes que, com um simples olhar, transformava homens em pedra, até que Perseu, herói da Antiguidade, consegue enfim cortar sua cabeça e a oferecer à deusa Atenas. É uma personagem vilanesca, não há dúvidas, se ficarmos só na leitura superficial.
Em tempos de empoderamento feminino, no entanto, a criatura pode ser lida também como vítima. Ela foi condenada a passar os dias aterrorizando o sexo oposto depois que Atenas, virgem e enciumada, se enfureceu com a vida sexual muito mais ativa daquela bela sacerdotisa de seu templo. É nessa interpretação que “Medusa”, que estreia no Brasil, se apoia.
Dirigido por Anita Rocha da Silveira, o filme chega aos cinemas depois de uma longa peregrinação de dois anos por festivais e sessões especiais, tendo passado por Cannes e Toronto e sido premiado no Festival do Rio há dois anos.
Na trama, um grupo feminino que canta numa igreja evangélica veste máscaras brancas e sem expressão para perseguir mulheres que consideram promíscuas. Elas as espancam, cortam seus cabelos e as obrigam a gravar vídeos dizendo que prometem aceitar Jesus no coração.
Mariana, uma delas, começa a questionar não só os atos de violência, mas todas as regras e comportamentos que homens e pastores impõem a elas, que no culto cantam sobre serem belas, recatadas e do lar – frase que ficou famosa na boca de Marcela Temer –, sob a liderança da jovem Michele – nome de outra ex-primeira-dama associada ao conservadorismo e à religião –, vivida por Lara Tremouroux.
Isso porque ela sofre um acidente que deixa um corte em seu rosto e causa sua demissão de uma clínica de estética. Ela perde o chão e vai trabalhar num hospital muito menos glamoroso, onde pode estar Melissa. Vivida em memórias fotográficas e fílmicas por Bruna Linzmeyer, a garota inspirou a criação da gangue mascarada, depois de ter seu rosto queimado por não se enquadrar no discurso moralista que permeia a trama.
Por mais distópica que seja a premissa e por mais fantasiosa que seja a estética do filme, com suas igrejas de luzes neon gritantes e frequentadores fardados, “Medusa” tem raízes em notícias de jornais e publicações de redes sociais. Enquanto pesquisava temas para seu segundo longa, depois de finalizar “Mate-me Por Favor”, Anita Rocha da Silveira se deparou com essa realidade absurda e pouco conhecida.
Resolveu, então, fazer alquimia. Juntou o que descobriu com seu interesse pelo mundo da cirurgia plástica e por religião, influências do terror dos anos 1970 e 1980 e a escalada conservadora no Brasil, num momento em que diz ter estado fascinada por influenciadores digitais de direita.
“Quanto tempo a gente perdeu dizendo que não era para a igreja cuidar do futuro do país?”, questiona o pastor conservador vivido por Thiago Fragoso em determinado momento de “Medusa”, dando o tom político que Rocha da Silveira queria capturar.
“Não critico a religião em si, mas certos grupos que se apropriam e distorcem as escrituras, usando isso como projeto de poder para alienar e isolar os outros. As meninas deste filme são algozes e também são vítimas, prestes a explodir”, afirma a cineasta.
“Minha ideia era explorar como um mito tão antigo ressoa no Brasil de hoje, por causa de um machismo estrutural que está introjetado em nós, mulheres”, acrescenta a cineasta, destacando que, em seu filme, diferente de outros contos feministas de agora, são as próprias mulheres que podam umas às outras.
Depois de sete anos com “Medusa”, Rocha da Silveira agora desenvolve duas séries e dois novos longas, um na mesma linha e outro que diz ser um horror mais clássico e comercial. Afinal, com o burburinho que o filme gerou e a atenção crescente em torno de seu nome, não há motivo para ficar paralisada como as vítimas da criatura mitológica.