Estreado em 13 de abril de 2017 e pouco assistido nas telas dos grandes cinemas do Brasil, ‘Martírio’, o documentário do cineasta Vincent Carelli, representa um retrato dos índios do Brasil num contexto ainda marcado pelo genocídio neocolonial. Uma verdadeira aula de História do Brasil da qual boa parte dos brasileiros não suporte sequer ouvir falar.
O documentário, premiado em diversos festivais de cinema, retrata de forma realista o permanente ‘martírio’ dos índios Guarani-Kayowaa numa luta permanente pela retomada suas terras no estado do Mato Grosso do Sul. O cineasta e estudioso da questão indígena traça uma linha do tempo para explicar de forma pormenorizada a trajetória de usurpação das terras indígenas desde a colonização.
O primeiro destaque do documentário refere-se a um tema pouco aprofundado na ciência moderna e bastante evitado na conjuntura política e econômica do país, a escravidão indígena. Com roteiro simples e direto, o cineasta revela as estratégias utilizadas pela Coroa Portuguesa para localizar, capturar e escravizar os povos indígenas de canto a canto do Brasil durante todo o século XVI e XVII.
Essa escravidão conferiu enormes riquezas à Coroa Portuguesa que utilizava a mão-de-obra indígena para a extração de minérios, especialmente ouro e prata, para a coleta das drogas do sertão e, mais intensamente, para incrementar a economia açucareira. Os índios eram deslocados de seus territórios e confinados nas frentes de trabalho de domingo a domingo. O jesuíta Padre João Daniel que viveu na Amazônia entre 1741-1757, em sua obra ‘Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas’ – volumes I e II, descreve como as grandes empresas de navegação utilizaram-se da escravidão indígena para acumular suas riquezas.
O referido autor denuncia os métodos de captura, ‘aldeamento’ e ‘descimentos’ dos índios da Amazônia para trabalhar nos diversos empreendimentos da Coroa Portuguesa num completo atentado aos direitos humanos. De maneira especial, João Daniel denuncia as grandes esquadras de embarcações que navegavam noite e dia pelos rios da Amazônia movidas pela força dos índios que trabalhavam à exaustão até a morte e o descarte de seus corpos no próprio rio.
Os povos Guarani-Kayowaa foram submetidos a todos esses processos colonialistas de escravidão e subjugação. Não sem apresentar resistências e diversas modalidades de enfrentamento aos colonizadores, o que lhes custou quase a dizimação total da população deslocada compulsoriamente para regiões de produção e concentração da economia imperial. Nesse processo, as terras habitadas pelos povos indígenas foram paulatinamente sendo tomadas pelos colonizadores.
Na sequência da linha histórica, o documentário destaca as estratégias de recrutamento dos índios Guarani-Kayowaa para arregimentar o Exército Brasileiro na fatídica ‘Guerra do Paraguai’ que marcou a década de 1860 com envolvimento direto da Argentina, Uruguai e Brasil contra o Paraguai, promovendo uma das mais sangrentas guerras da América Latina. As batalhas ocorridas principalmente entre 1864 e 1870 utilizaram-se amplamente dos índios Guarani-Kayowaa nas tropas do Exército Brasileiro lideradas pelo general Duque de Caxias. Da mesma forma, o povo Guarani que vivia em toda a extremidade da região sul da América Latina foi recrutado pelos demais países envolvidos na mesma guerra.
Não se sabe ao certo quantos índios foram mortos nessas batalhas. O que se sabe é que do lado brasileiro populações inteiras foram deslocadas de suas terras durante a guerra e se refugiaram às margens dos rios e florestas do lado paraguaio para escapar da morte, uma vez que não obtiveram nenhuma proteção do lado brasileiro.
Terminadas as batalhas, os generais brasileiros sortearam as terras do povo Guarani-Kayowaa entre as empresas patrocinadoras da guerra. E quando os refugiados retornaram às suas aldeias se depararam com os invasores de suas terras que passaram a negar veementemente a existência de povos indígenas nessa região. Desde então, destituídos de suas terras, os Guarani-Kayowaa passaram a viver como apátridas nas fronteiras do Brasil que até pouco tempo lhes privava, até mesmo do seu registro de identidade nacional.
Na terceira e última fase do documentário são apresentadas as memórias dos mais velhos, com destaque para as mulheres anciãs, que relatam a luta pela retomada das terras que lhes foram roubadas e ocupadas por grandes empresas produtoras de erva-mate e mais tarde pelo agronegócio. As florestas foram totalmente destruídas e a “Terra sem Males” do mito Guarani-Kayowaa que representava o lugar geográfico e espacial da vida sem misérias, sem guerras e de perfeita convivência com a natureza, passou a existir apenas na memória dos mais velhos.
O documentário retrata as diversas lutas e resistências deste povo que nunca desistiu da sua ‘Terra sem Males’ e por ela, são capazes de lutar e morrer ‘até o último índio’ em insurgência pacífica e obstinada numa grande marcha pela retomada de seus territórios sagrados. Denuncia com farta prova documental, a omissão do Estado brasileiro frente ao genocídio no Mato Grosso do Sul que vem permitindo, senão patrocinando, mais de um século de violência aos Guarani-Kayowaa. Esse mesmo contexto se repete em praticamente todas as Terras Indígenas do Brasil.
Por fim, ‘Martírio’, é um documentário intenso e incontestável, resultado de farto levantamento documental, de imagens fortes, de falas profundas que precisam ser ouvidas e atendidas. Um verdadeiro exemplo de cidadania e luta por direitos humanos e sociais. Vale a pena assistir e debater.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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Exterminar populações nativas para ocupar seus territórios é uma tradição brasileira. Começou no ano de 1500, quando conquistadores portugueses desembarcaram das caravelas e encontraram no litoral da Bahia índios que habitavam há séculos as terras anunciadas como recém-descobertas. A indiferença ao genocídio dos povos originários foi justificada pela Doutrina da Guerra Justa, utilizada no Período Colonial para banalizar a morte dos pagãos que resistiam à chegada do progresso. Pagãos ou “gentios bárbaros” eram considerados todos os povos que não compartilhavam com o colonizador religião, língua e costumes e chegada do progresso significava a ocupação de suas terras pelo invasor europeu. A História do Brasil precisa ser revista para revelar interpretações mais verossímeis do que as apresentadas nos livros didáticos, omissos em relação ao tratamento genocida dispensado pelo Estado Brasileiro aos povos originários. Índios avistados nos semáforos das cidades brasileiras, pedindo esmolas para garantir a sobrevivência, provam que a tradição continua, porém com versão atualizada. Chegada do progresso significa, hoje, expulsar populações indígenas de suas terras, derrubar a floresta e implantar nelas atividades altamente lucrativas que destroem o meio ambiente e desestruturam a organização social indígena. Quem lucra com a mineração à base de mercúrio; com o comércio ilegal de madeira e carvão que derruba árvores e incendeia florestas; com o contrabando de espécies exóticas de peixes e aves que adornam aquários europeus; com a exportação de sementes valiosas; com a plantação extensiva de milho e soja que abusa de agrotóxicos e contamina as águas de rios e lagos, e com a construção de usinas hidrelétricas ?