Os vídeos e a repercussão na mídia do episódio envolvendo o cerceamento da fala da vereadora Joana D’Arc (PR) na CMM e a alegação do presidente da Casa e pré-candidato ao Governo, Wilker Barreto (PHS), de mera aplicação do regimento interno da Câmara no momento do discurso dela expõem a clara misoginia na política no Amazonas. E não podem ser avaliados de forma isolada sem compreender o contexto em que este fato ocorre.
O Estado ocupa a pior posição do País em representação feminina nos espaços de poder, segundo levantamento feito em março de 2016 pela Procuradoria da Mulher no Senado Federal. O Brasil tem menos mulheres na política que países do Oriente Médio.
O impedimento da fala de Joana D’arc durante a sessão sobre a CPI da concessionária Manaus Ambiental e sobre a postura da Casa em relação ao assunto são reflexos da conjuntura política e do nível de preconceito com mulheres que falam o que é preciso não calar.
Para ocupar um cargo eletivo, mulheres passam por desafios superiores aos de um parto em razão das regras machistas do jogo dentro dos partidos e cultura que exige delas atributos bem além de posicionamento político, plano de governo ou atuação parlamentar.
As que passam nesta fase do game chegam à vitória? Não! Precisam encarar novos “partos”, resultado da imposição da invisibilidade nas casas legislativas, que vão desde questões simples às mais absurdas e vergonhosas tentativas de censurar a atividade parlamentar e a fala das mulheres.
Como exemplo “simples” de que os ambientes dos parlamentos são feitos para os homens e para impor a invisibilidade às mulheres, a primeira senadora do Brasil, em 1979, Eunice Michiles enfrentou a falta de banheiro feminino no plenário do Senado.
Outras parlamentares, em resposta à postura contra o machismo, demagogia e contra o absurdo da violência doméstica, são obrigadas a ouvir que não merecem ser estupradas por serem feias, como ocorreu com a deputada Maria do Rosário, mais recentemente na Câmara dos Deputados.
Joana D’Arc ao reclamar com franqueza por mais um minuto para falar, não pôde usar sequer os dois minutos que haviam sido concedidos a ela. No dia seguinte, ao tratar o mesmo assunto, a CPI da concessionária Manaus Ambiental, a mesma medição disciplinar da Mesa Diretora lhe foi imposta: foi preciso encerrar a fala exatamente nos minutos marcados.
Alguém tem notícia de tanto rigor a políticos homens, para discursos massantes de assuntos bem menos importantes à sociedade e sem interesse coletivo? Há notícia de inquisição tão feroz na imprensa por atos diários de uso de espaços públicos, de bens públicos e de episódios políticos para projeção eleitoral? “Quantas vezes se leu só essa semana, essa história contada assim por cima?”.
Joana D’Arc, eleita aos 27 anos, com 3.261 votos e a bandeira de “defesa dos animais”, em que pese sua inexperiência parlamentar, em poucos meses demonstra maior consciência sobre a importância da atuação de um vereador do que muitos que ocupam há anos a cadeira. Na postura franca e corajosa do episódio, demonstra que não engrossa o número de mulheres que reforçam as práticas machistas na política.
Um parlamentar custa caro demais ao contribuinte e o Poder Legislativo, neste momento, está em xeque, sob suspeita de ter se transformado em balcão de negócios para manter demagogicamente guetos eleitorais e atuar em interesse dos doadores da campanha e do Caixa 2. Também pelo silêncio para os atos do Executivo quando convém.
A postura da vereadora Joana D’Arc na CMM nesta legislatura, que atraiu a atenção com o episódio da terça-feira, tem sinalizado um início de mandato com a tentativa de ruptura desse script. Isso é bom para ela, mas é bom também para a classe política.
Na terça, a vereadora ouviu de parlamentar “mais experiente” que devia se calar porque CPI na Câmara sempre termina em pizza. Joana não aceitou essa “verdade” e quis falar.
Na sequência: a vereadora enfrenta o presidente da Casa por mais tempo para falar, a transmissão no Facebook e a voz que diz “filma que comove” – que a vereadora diz não ser dela em sua página no Facebook. Não tive chance de ler na cobertura jornalística do episódio essa manifestação dela. Apenas vereadores sem nome em publicações sem assinatura, fazendo a leitura do caso: “ela fez ‘escândalo’ de uma questão interna da CMM”.
A condução da CMM e a postura dos vereadores sobre CPI não é questão interna da Casa. Filme, comova, perturbe e provoque inquietações, vereadora! Aliás, nada do que acontece em qualquer espaço público mantido com dinheiro público deveria ser “questão interna”.
Vereadores são funcionários públicos que representam a população no Poder Legislativo. Não têm maior ou menor importância, privilégios de acesso a espaços porque têm menos ou mais votos, porque são de situação ou oposição.
Não é favor, nem gentileza deixar que uma vereadora tenha o mesmo tempo ou ultrapasse o tempo regimental como se permite a um vereador.
Filme, comova, perturbe e provoque inquietações, vereadora, todas as vezes em que a prática de interromper ou impedir a fala da mulher ocorrer neste espaço, que deveria ser o embrião de um reordenamento social que representasse práticas de maior igualdade entre homens e mulheres, brancos e negros, pobres e ricos.
Olhar o vídeo sem filtros e sem o script dos vereadores e publicações sem nome não permite ver uma mulher se vitimizando. Com honestidade, é possível ver uma mulher na condição de parlamentar consciente de seu valor e da sua função no esforço de controlar a emoção para que esta também não cale suas palavras.
O vídeo mostra uma mulher que assusta até mesmo os vereadores que subiram à tribuna para prestar solidariedade a ela e prontos para dar apoio quando o choro vencesse as palavras, mas, que ao invés disso, arregalaram os olhos e tentaram pôr limites, falando “tá bom” quando ela, bem articulada, diz não se intimidar com a ameaça de enfrentar a Comissão de Ética e com a tentativa de anular suas manifestações, ao ignorarem seu braço erguido pedindo espaço para falar.
Joana, na declaração, diz ser consciente que este tipo de prática não deve impor medo a políticos homens e mulheres e que, via de regra, o projetam sim a outros cargos.
E qual o problema de uma vereadora querer que o trabalho e a atuação tenha projeção para outras disputas eleitorais? Qual o problema de mais mulheres ocuparem vagas na ALE? Se isso é oportunismo para projeção tendo em vista 2018, o que seria, então, um vereador se lançar a uma eleição fadada à derrota ao Governo do Estado, segundo dados pesquisas eleitorais?
Os espaços de poder e as mulheres
É equívoco grosseiro, diante de tantos números e pesquisas, olhar o episódio da CMM distanciado da realidade política e das mulheres no parlamento no País. Os números ajudam a entender o que ocorreu e porque a interrupção das fala das mulheres é questão tratada como corriqueira pela maioria de nós.
Na CMM, palco da polêmica que convida ao debate sobre o machismo, só 9,75% das 41 cadeiras são ocupadas por mulheres. Na ALE, há apenas uma mulher e 23 homens na função de deputados. No Congresso Nacional, há uma senadora e um deputada federal das três e oito vagas do Amazonas, respectivamente, no Senado e na Câmara.
A exposição desses números não significa a defesa da exclusão de homens e de uma política unicamente cor de rosa. Mas o colorido é mais rico que o desbotamento das cores. Os dados apenas expõem uma realidade: a brutal negação das mulheres no espaço de poder.
Não só no parlamento, no Judiciário, durante um julgamento no STF, a ministra Carmen Lúcia abordou essa prática ao citar pesquisa indicando que as juízas e ministras são muito mais aparteadas em seus votos e interrompidas em suas exposições que os homens. É uma prática que reforça um entendimento misógino de que a mulher não tem autonomia e preparo para o debate ou detenção do conhecimento. E que, infelizmente, ultrapassa os limites dos espaços de poder e vira um ciclo porque “credencia” e “privilegia” nesses ambientes os homens em detrimento da mulher. É banalizado e por isso levado como “questão interna” ou normal.
A maioria dos partidos, salvo raríssimas siglas, não tem como linha programática a participação de mulheres no campo político. Não à toa, antes de 2009, as candidaturas de mulheres não chegavam a 30%. Após a introdução das cotas, a dificuldade não mudou. É regra em todo período de registro de candidatura os partidos descumprirem a proporcionalidade entre candidaturas femininas e masculinas.
Para garantir o registro da coligação, preenche-se as vagas com nomes de mulheres das famílias de políticos, funcionárias da sigla e o “jeitinho” se sobrepõe ao objetivo da lei, que é incentivar a participação e representação da mulher na política.
A campanha é outra peleja em função da falta de acesso aos tempos de tv e rádio e fundo partidário como os homens, salvo exceções – sobretudo as que representam clãs políticos com poder no partido e as que estão a frente de palanques eletrônicos.
A falta de mulheres nos espaços de poder inviabiliza projetos importantíssimo no contexto da política para as mulheres, maioria da população.
Em 2015, a única mulher na Assembleia Legislativa do Amazonas, a deputada Alessandra Campelo, apresentou projeto de lei para que mulheres em condições de violência e risco de morte tivessem maior acesso às habitações populares.
O projeto não foi aprovado. Os deputados homens, eleitos com votos de mulheres, não entenderam o óbvio. Consideraram que não se podia dar esse “privilégio” às mulheres. Não se comoveram e nem se perturbam com as mortes das mulheres dentro dos ambientes domésticos.