Faltando apenas 40 dias para o início da Assembleia Especial para a Região Pan-Amazônica, sob o título: Amazônia, novos caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral, o Processo Sinodal segue despertando muitas reflexões importantes para a caminhada da Igreja Católica na Amazônia.
O Documento principal que orientará as decisões da Assembleia Sinodal é o Instrumentum Laboris. Resultado da compilação de extensa “escuta” que resultou num importante diagnóstico da Pan-Amazônia, o Instrumentum Laboris apresenta os clamores mais profundos dos povos dessa região que serão debatidos durante os trabalhos do Sínodo. Dentre as questões mais pertinentes apresentadas no diagnóstico da Pan-Amazônia, é possível destacar algumas características centrais apresentadas no Instrumentum Laboris:
1. A violência e os conflitos socioambientais: na segunda parte do Documento de Trbalho, intitulada “Ecologia Integral: o clamor da terra e dos pobres – não à destruição da Amazônia”,chama-se a atenção para questão ambiental e afirma-se que a criminalização das lideranças nos conflitos socioambientais tem sido recorrente na Pan-Amazônia e representa uma grave violação aos Direitos Humanos. Atualmente a Amazônia é a região onde mais ocorrem conflitos e mortes por conflitos agrários e socioambientais no mundo. Ao mesmo tempo, é considerada uma das regiões mais perigosas para os defensores e defensoras dos direitos humanos. Nas escutas sinodais, o povo denuncia que “os estados têm se recusado realizar consulta prévia aos grupos indígenas, ribeirinhos e quilombolas para concessões e contratos de exploração territorial, violando a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Isso tem permitido a invasão criminosa dos territórios por madeireiras e garimpos clandestinos” (Instrumentum Laboris – parágrafos 52-53). Frente a essa realidade, propõe-se promover “linhas de ação institucionais que promovam o respeito ao meio ambiente” e programas de formação permanente para as lideranças, além do compromisso em defesa da vida dos povos indígenas, ribeirinhos, camponeses e quilombolas que são considerados os verdadeiros “guardiões da floresta” atuando na defesa da Casa Comum.
2. Nenhum direito a menos. O Capítulo VIII, intitulado “o papel profético da igreja e a promoção humana integral”, em sua reflexão sobre a “Igreja Profética na Amazônia: Desafios e esperanças”, afirma que “evangelizar implica ao mesmo tempo comprometer-se para promover o cumprimento dos direitos dos povos indígenas. A Igreja não pode deixar de se preocupar pela salvação integral da pessoa humana, o que comporta favorecer a cultura dos povos indígenas, falar de suas exigências vitais, acompanhar os movimentos e reunir as forças para lutar pelos seus direitos (Instrumentum Laboris Parágrafo 143). Isso implica na urgência de se assumir a denúncia “contra modelos extrativistas” e projetos que destroem a floresta, contaminam os rios, violam os direitos das comunidades “e promovem a morte”. Diante disso, faz um chamado a trabalhar em rede para “se aliar aos movimentos sociais de base, para anunciar profeticamente uma agenda de justiça”.
3. Povos indígenas isolados. O primeiro capítulo do Instrumentum Laboris apresenta uma epígrafe de um fragmento da conversa do Papa Francisco com os Povos Indígenas em janeiro de 2018 em sua visita a Porto Maldonado, na Amazônia Peruana: “É bom que agora sejais vós próprios a autodefinir-vos e a mostrar-nos a vossa identidade. Precisamos escutar-vos”. De fato, os povos indígenas foram escutados e apresentaram suas demandas nas escutas sinodais. Entretanto, há uma preocupação especial com relação aos povos isolados. “Existem entre 110 e 130 distintos Povos Indígenas em Isolamento Voluntário ou Povos Livres; vivem à margem da sociedade ou em contato esporádico com ela. São os mais vulneráveis entre os vulneráveis. Não conhecemos seus nomes próprios, idiomas ou culturas; isolaram-se por terem sofrido traumas anteriores ou foram violentamente forçados ao isolamento” (Instrumentum Laboris, parágrafos 57-61). A Igreja é convocada a assumir a defesa destes povos, exigindo dos governos que facilitem “os recursos necessários para a proteção efetiva”, como a criação de um censo e de reservas naturais. Além disso, pede à Igreja uma pastoral específica para estes povos que incida na formação, para que conheçam e façam reconhecer seus direitos. Assim, convoca a “rejeitar a aliança com a cultura dominante”, para promover as culturas e os direitos dos indígenas, dos pobres e do território.
4. Mudanças profundas orientadas pela Laudato Sì. O texto destaca a necessidade de mudar nosso modo de consumo baseado no “consumismo exagerado” e na produção exacerbada de resíduos descartados de maneira irresponsável, muitas vezes tóxicos e altamente poluentes. Convoca a sociedade a uma mudança radical nos seus hábitos de consumo e desafia a uma “educação integral” a ser aprendida com os povos indígenas que cultivam “um método de ensino-aprendizagem baseado na tradição oral e na vivência prática. O desafio é integrar este método no diálogo com outras propostas educativas, com vistas a promover uma cidadania ecológica. Esta educação une o compromisso de cuidado com a terra e o compromisso com os pobres, e suscita atitudes de sobriedade e respeito vividas por meio de uma austeridade responsável (Instrumentum Laboris Parágrafos 92-98).
5 – Conversão Ecológica. No capítulo IX, o Documento de Trabalho conclama à “conversão ecológica que implica reconhecer a cumplicidade pessoal e social nas estruturas de pecado, desmascarando as ideologias que justificam um estilo de vida que agride a criação. Requer de nós um olhar crítico e autocrítico que nos permita identificar aquilo que danifica a criação (Instrumentum Laboris, parágrafos 99 – 100).
São questões que implicam em mudanças radicais no sentido de mudança do “lugar de fala”. Novos sujeitos entram no debate, no caso, os Povos Indígenas, os ribeirinhos, os quilombolas e os camponeses da Amazônia (campesinos e seringueiros) que passam a ser considerados os verdadeiros protagonistas das mudanças.
São mudanças que incomodam setores da igreja e da sociedade ainda muito apegados às práticas colonizadoras que nunca respeitaram os povos indígenas como sujeitos e muito menos como sujeitos de mudanças tão importantes e tão profundas. Ouvir o que estes povos têm a dizer à sociedade mergulhada nos valores do consumismo parece uma afronta para muitos que ainda se guiam por comportamentos, discursos e práticas sociais, políticas, econômicas e pastorais altamente colonizadoras. Por isso o sínodo tem incomodado tanto esses setores da Igreja e da sociedade. Quem não quer se deixar “Amazonizar” está irritadíssimo com as propostas do sínodo e seus possíveis desdobramentos. Quem não se deixa “Amazonizar” não está nenhum pouco preocupado com a floresta, nem com os rios e os povos dessa região. Pelo contrário, a usa tão somente para se projetar econômica, política e clericalmente.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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