Por Leonardo Sanchez, da Folhapress
CANNES – É num pequeno apartamento, em meio à louça suja e diante de uma televisão ligada, aparentemente por horas, que o público vai reencontrar um dos grandes heróis de Hollywood nesta semana. Indiana Jones já não é mais o mesmo, a cena deixa claro, mas tampouco perdeu a essência.
Envelhecido, de samba-canção e com a barba por fazer, Harrison Ford emerge de uma grande poltrona nos primeiros minutos de “Indiana Jones e a Relíquia do Destino”. Anticlimática, a cena sucede uma abertura nostálgica e veloz, com perseguições, combates e tudo aquilo que tornou os primeiros três filmes da franquia sinônimos de cinema de ação de qualidade.
Mas aquela sequência está na memória do protagonista, que acorda assustado conforme a câmera adentra o apartamento como um velho amigo que, sorrateiramente, reaparece depois de anos. Há cheiro de melancolia em todo canto, atestando a passagem do tempo para Indiana e também para os fãs.
“Esses personagens não têm mais roupa limpa”, diz Ford sobre o adeus que o filme representa, emendando ainda um comentário sobre outras duas despedidas que estrelou recentemente -a de Han Solo, da franquia “Star Wars”, e de Rick Deckard, de “Blade Runner”.
Apesar de o trio oitentista ser sinônimo do cinema espetáculo de Hollywood, ele diz não comparar os personagens, um exercício intelectual que vai além do que é pago para fazer, embora se considere um cara de sorte por tê-los no currículo.
Ford falou com a imprensa janelas acima de um enorme cartaz de “A Relíquia do Destino” que a Disney instalou na avenida Croisette, luxuoso corredor de estrelas e de hotéis, no último Festival de Cannes. A conversa aconteceu horas depois de o americano se emocionar ao receber uma Palma de Ouro honorária, honraria reservada a poucos.
“Não se volta para um personagem como esses sem um motivo muito bom, e o Indiana precisava que seu ciclo fosse fechado. A franquia começou com esse personagem muito físico, cheio das paixões da juventude, e foi assim que ele permaneceu na memória das pessoas por 40 anos. Tivemos que ajustar a história para acomodar a idade, mas sem timidez, usando isso a nosso favor”.
No filme, Indiana se veste e vai, uma última vez, para a faculdade onde leciona aulas de arqueologia para turmas entediadas -não pelos seus métodos, mas pelo furor tecnológico que contamina o país às vésperas da chegada do homem à Lua, naquele ano de 1969. O futuro, ali tão perto, faz murchar o interesse por um passado distante.
Indiana também se sente assim no começo da trama, como uma peça de museu deixada para empoeirar -deprimido, saudosista. Mas não demora muito para ele vestir o chapéu e empunhar o chicote novamente. É na própria faculdade onde a ação começa, numa festa de aposentadoria que logo vira um enterro.
Capangas de um oficial nazista invadem a homenagem ao protagonista e atiram em quem está no caminho. Eles querem a tal relíquia do título, uma tecnologia antiga e com segredos que levaram um velho amigo de Indiana à loucura. A filha do estudioso, igualmente obcecada, entra em cena para tentar desvendar o objeto, mas não sem atrair uma parada de vilões.
Phoebe Waller-Bridge foi convocada para preencher a outra metade da relação paternal que guia a história, uma versão aprimorada daquela de sangue que serviu de mote para “O Reino da Caveira de Cristal”, em 2008.
“Cresci como se ‘Indiana Jones’ fosse parte do meu DNA. Eu passei anos achando que ele era real. No fim, ele realmente é”, diz ela bem-humorada, apontando para Ford. Foi ele quem quis Waller-Bridge em “A Relíquia do Destino”, depois de ser acidentalmente exposto a “Fleabag”, brinca ao mencionar a série que a britânica estrelou e escreveu.
Desta vez, ela não assina partes do roteiro, mas sua presença mostra um esforço de modernizar a saga e deixá-la em dia com o tal empoderamento feminino -o último “007”, outro clássico sobre um machão, também recorreu à britânica, mas só nos bastidores. O tipo de humor ácido que a consagrou aparece em vários momentos.
“Eu roubei, e eu roubei, e então eu roubei. Chama-se capitalismo”, diz ela para concluir um embate verbal travado com Indiana e o nazista interpretado por Mads Mikkelsen, que disputam o direito sobre a relíquia do destino.
É impossível ver a cena e não ser remetido às inúmeras notícias sobre museus nos Estados Unidos e na Europa que estudam devolver artefatos históricos roubados de nações mais pobres. E Indiana Jones, arqueólogo americano, passou seus últimos quatro filmes fazendo exatamente isto, caçando arcas perdidas, templos da perdição e caveiras de cristal.
“Pensamos nisso tudo e sobre a maneira certa de equilibrar essa discussão. Estamos fazendo um filme moderno, então ele precisa representar ideias modernas, mas também não queremos que ele se torne um artigo de opinião contra o Indiana”, diz James Mangold, que dirige o longa-metragem com a benção de Steven Spielberg, criador da franquia.
“A solução foi incluir novos personagens que trouxessem essas questões inapropriadas sobre o nosso passado à tona, mas deixando que o público entendesse sozinho a sua relação com o personagem, porque ele é amado. É o mesmo embate que travamos no mundo real toda hora”, diz ele sobre ondas de cancelamento e revisionismo.
Pela primeira vez, Indiana Jones chega às telas sem a direção de Spielberg, que comandou “Os Caçadores da Arca Perdida”, de 1981, “O Templo da Perdição”, de 1984, “A Última Cruzada”, de 1989, e “O Reino da Caveira de Cristal”, de 2008, num retorno que não agradou a todos e que, por isso, pode ter afastado o cineasta do novo filme. Ele é um dos produtores, no entanto.
Mangold, por sua vez, parecia uma escolha adequada por ter estado à frente de outra despedida de um herói icônico das telas recentemente. Em “Logan”, ele deu aos fãs de “X-Men” um adeus doloroso e emocionante ao Wolverine de Hugh Jackman, embora ele tenha dito que voltará em participações especiais -nada é sagrado em Hollywood, e “Indiana Jones” também está sujeito a isso.
Mas Ford parece decidido a não empunhar mais o velho chicote. Sua empolgação com “A Relíquia do Destino” é maior que aquela que demonstrou nas campanhas de lançamento de “Star Wars: O Despertar da Força” e “Blade Runner 2049”, o que pode indicar uma preferência. Nem por isso ele deixa de ser incisivo sobre o “sayonara” que dá no novo filme.
Nele, afinal, Ford é a estrela, e não um mero propulsor de bilheteria, um personagem de apoio a novos rostos que chegaram para dominar uma franquia que já foi sua. Mangold não deu espaço nem para que um jovenzinho interpretasse o Indiana Jones de 30 e poucos anos nas cenas de flashback.
Com ajuda da inteligência artificial, o diretor e sua equipe de efeitos especiais recriou digitalmente o rosto que Ford tinha em “Os Caçadores da Arca Perdida”. É ele quem atua na sequência inicial, ambientada nos anos 1940, mas com uma espécie de máscara computadorizada que o faz parecer muito mais novo, a exemplo do que aconteceu com o elenco de “O Irlandês”, de Martin Scorsese.
A tecnologia estudou as expressões de Ford em todos os filmes da franquia, bem como em outros longas e em gravações nunca vistas pelo público. Enquanto isso, no set, o ator fez os flashbacks com uma série de pontinhos no rosto. Mais tarde, no computador, essas marcas serviram como uma cola para o rosto rejuvenescido criado por inteligência artificial.
O que não precisou de ajuda tecnológica, porém, foi o corpo de Ford. Mostrando boa forma, o ator de 80 anos não se acanhou ao levantar a camisa no filme. Mais do que abalar corações na plateia, a cena serviu para deixar bem claro que Indiana Jones, imortal e quatro décadas depois, está revigorado em meio à onda de nostalgia que toma o cinema.
Indiana Jones e a Relíquia do Destino
Quando Estreia nesta quinta (29), nos cinemas
Classificação 14 anos
Elenco Harrison Ford, Phoebe Waller-Bridge e Mads Mikkelsen
Produção EUA, 2023
Direção James Mangold