SÃO PAULO – O tempo é rei e Gilberto Gil soube usá-lo de maneira soberana em 2014. Lançou o álbum Gilbertos Samba, assistiu a jogos da Copa do Mundo, engatou uma turnê europeia de voz e violão – com ele próprio dirigindo um carro entre as cidades nas quais se apresentou – e no dia 13 participou do Festival MPB, em Recife, ao lado de Marisa Monte.
E encerra o ano intenso em São Paulo, para lançar o CD e o DVD Gilbertos Samba Ao Vivo. Gravado em setembro no Teatro Municipal de Niterói, o show tem no seu eixo a ligação do repertório de Gil com o fino do cancioneiro de João Gilberto. Nesta entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Gil discorre sobre sua relação com os músicos que o acompanham, seu violão e as expectativas para o segundo mandato de Dilma Rousseff. Além de apontar a possibilidade de passar 2015 trabalhando em família.
Sua discografia é composta por diversos registros ao vivo, desde os anos 1970. No caso do Gilbertos Samba, o que motivou a gravação do show?
Foi essa acolhida generalizada a esse tipo de produto. Não é nem uma coisa que eu tenha feito questão de fazer. É uma consequência natural, hoje em dia. Todo mundo que lança um disco ou um show faz. É uma consequência desse modus operandi do sistema de promoção dos trabalhos. É mais nessa direção do que uma iniciativa pessoal. O DVD é, naturalmente, decorrente dos projetos, hoje em dia. Como não tinha nada a me opor, deixei que fosse feito.
Há uma evidente contribuição dos músicos no show, cada um se complementa à sua voz e ao violão. Como tem funcionado essa dinâmica entre vocês?
Ali, há vários aspectos em relação à dedicação do Bem (Gil, filho do cantor). Ele gosta muito de música e do trabalho do pai. É a primeira vez que ele faz uma produção de disco, com Moreno Veloso. Mestrinho é um virtuoso que vem dessa linhagem de grandes acordeonistas surgidos no Brasil nos últimos 20 anos. Tem um gosto pela grande variedade de possibilidades na canção brasileira. Domenico (Lancellotti) é um menino interessado em investigar o samba e as interseções entre o pop e o rock. São meninos muito interessados e muito próximos a uma coisa que está no meu trabalho o tempo todo, na minha dimensão de tropicalista.
O que chama atenção no show é que o repertório de João Gilberto se entrelaça com músicas suas, algumas delas ausentes de suas apresentações há muito tempo. O mergulho na obra de João também ocasionou um mergulho no seu próprio repertório?
Foi uma consequência dos meninos. Mancada é sugestão do Bem, Meio de Campo foi do Domenico, Chiclete Com Banana, um divisor de águas na minha maneira de ler o samba, tudo surgiu dos meninos. Todo esse projeto, desde o disco até agora, é um projeto em que a presença deles é predominante como estímulo para a confecção do trabalho. É uma coisa que acaba ocorrendo naturalmente, a união da ponta inicial do meu trabalho com esse mergulho na obra de João, esse estágio mais sofisticado do samba que a bossa nova representa.
No CD e no DVD fica clara a sua intimidade com o violão. A oportunidade de fazer um trabalho com o repertório de João Gilberto, além da sua recente turnê pela Europa, evidenciam essa relação com o instrumento?
Sem dúvida. Eu me coloquei exigências de investigação sobre os meandros do instrumento e do meu estilo ao tocá-lo. Tenho a impressão que é porque como João é um violonista de marca excepcional não só para o Brasil, mas para o mundo todo, com uma contribuição absolutamente original e profunda, isso tocou nos meus brios. É como se eu dissesse: “Já que eu vou fazer uma releitura do João, deixa eu me dedicar, tocar mesmo, investigar um pouco”. Sem dúvida, eu me dedico muito mais ao violão do que antes.
Logo que o disco de estúdio foi lançado, você disse que não sabia o que João Gilberto havia achado. Ele já se manifestou?
Por acaso, estive com uma pessoa próxima a ele que acabou dando notícias de que João tinha ouvido o disco muitas vezes e ele disse: “Acho que Gil gosta mais ou menos de mim” (risos). Na verdade, eu gosto muito mais do que mais ou menos, gosto mais mais. Tenho a impressão de que é a forma de ele dizer: “O Gil tem ele próprio aí”. Tem mais ou menos o João, mas tem mais ou menos o Gil. É um modo cifrado, à maneira do João, de dizer algo.
É Luxo Só não estava no repertório original do show, e foi gravada na passagem de som da gravação. Como surgiu a ideia de incluí-la no projeto?
Agora, ela já está no show. Quando Zé Maurício Machline decidiu homenagear o samba no último Prêmio da Música Brasileira, ele me pediu para fazer É Luxo Só. Eu me lembrei na ocasião que Caetano tinha me dito, na época da gravação do Gilbertos Samba, que esse samba havia sido fundamental para João. Ele considerava a sua versão um divisor de águas no trabalho dele. Com a proposta do Zé Maurício e sua importância para João, comecei a fazê-la. Toquei em casa vários dias, elaborei a minha versão e depois continuei tocando, procurando uma versão que acolhesse os meninos. Na passagem de som da gravação eu toquei, como tocava quase sempre. Os meninos já estavam preparando a gravação e o registro foi feito. Bem me pediu para colocá-la como faixa-bônus. Nesses shows de voz e violão pela Europa, ela também esteve em todos. Agora, a incluímos no show Gilbertos Samba com a banda participando.
Quais as suas expectativas para o segundo mandato da presidente Dilma Rousseff?
Espero que seja um mandato de correção de rumos, como se espera em relação à economia, por exemplo. As providências, ao que parece, já estão sendo tomadas, no sentido de retomar uma posição mais equilibrada em relação a contas públicas e déficit. Eu acho que ela também vai ter que cuidar um pouco melhor de questões como o meio ambiente. As pressões estão chegando, há evidências cada vez maiores do mundo técnico-científico sobre o agravamento das questões ambientais pela interferência humana, por falta ou excesso de políticas nesse campo. Tem a coisa da cultura, ela também terá que pensar nisso e nos desdobramentos das novas tecnologias, o impacto de tudo isso na vida cultural. Há ainda a questão das leis e dos direitos autorais. Essa é uma expectativa de todos os brasileiros e do mundo, além da própria corrente política a que ela pertence. Eu sempre espero melhoras.
Ainda não se sabe quem assumirá o Ministério da Cultura neste segundo mandato. Caso o seu nome seja lembrado, você voltaria a ser ministro?
De maneira alguma, nem pensar. Agradeceria muito a chamada, mas eu diria não. Não me sinto capacitado. Naquele primeiro momento, com o presidente Lula, havia uma excitação em mim e no ambiente cultural em relação à atualização da agenda cultural. Agora não, agora é pedreira. É a implementação cada vez mais intensiva das novas e velhas agendas.
Quais seus planos para 2015? Alguma possibilidade de um álbum com músicas inéditas?
Essa coisa de inéditas é sempre uma cobrança. “E aí, quando vai fazer um repertório de músicas novas?” Talvez eu faça. Tenho conversado com meus filhos, o Bem, a Preta e o José, que agora está formando uma banda, pra ver se a gente faz alguma coisa juntos. O que está mais presente como possível horizonte de ação é isso, algo com filhos e netos.
(Estadão Conteúdo/ATUAL)