O 12° Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ocorrido semana passada em Brasília, entre os dias 20 e 22 de agosto/2018, oportunizou tratativas de urgentes e essenciais problemáticas de insegurança pública que afligem o país.
Ao longo de suas principais conferências e mais de quarenta mesas temáticas, as questões fluíram de modo a possibilitar uma ampla e qualificada percepção dos cenários de problemas e possíveis soluções para a epidemia de violência e criminalidade na qual o Brasil está submerso. Revelou-se, no curso do evento, que o triste recorde de mortes violentas intencionais do ano passado foi quebrado esse ano e ainda estamos em agosto: já são quase 64 mil homicídios. Não há guerra pelo mundo que mate mais do que a violenta realidade social e institucional brasileira. Algo tão grave e hediondo que nos leva a todos a questionar: a quem tem servido, nas últimas décadas, todo esse oneroso aparato estatal e de instituições que efetivamente não funcionam em prol da sociedade brasileira?
Nesse cenário, as conferências e mesas do 12° Encontro do FBSP discutiram a accountability e eficiência das instituições policiais, a militarização da segurança pública, a eficácia da gestão e de modelos carcerários vigentes no país, a inclusão da juventude como fator de prevenção da violência, políticas penais para mulheres, os impactos das fake news, as possibilidades de atuação dos municípios na segurança pública e na política penitenciária, o poderoso alcance das facções e organizações criminosas, o medo como objeto de políticas de segurança pública, o esforço policial na repressão ao tráfico ilícito de drogas e a eficácia da política de “guerra contra as drogas”, a violência nas escolas, a violência sexual, a justiça restaurativa, a insegurança pública na Amazônia e suas fronteiras, dentre outros temas cruciais à segurança pública do país.
Integrei a comitiva que partiu do Amazonas e participou ativamente das atividades e mesas do fórum. Além dos estados, diversos segmentos e entidades participaram do evento. Apresentei o texto a seguir na mesa 41 do 12° FBSP, que discutiu urgentes questões de segurança pública na Amazônia:
Segurança pública e história do Amazonas
Abordar a segurança pública na história do Amazonas ou da Amazônia é uma temática instigante e, ao mesmo tempo, espinhosa, como tentar sair de um labirinto sem saber como se chegou lá.
É necessário esclarecer sobre os critérios de enfoque, pois nem todos são plausíveis. Por exemplo, não é consistentemente válido o enfoque que parte da existência de estrutura de Estado (secretaria), pois isso é muito recente do ponto de vista histórico. Aliás, nem mesmo o enfoque que parte da instalação do Estado do Amazonas, pois isso implicaria ignorar um grande período de tempo e também eventos que não podem ser desconsiderados pela relevância e impactos históricos.
A abordagem plausivelmente válida é a que considera as ocorrências de processos de violência, saque, extermínio, que foram frequentes desde a época da conquista da região amazônica (séc. XVI e XVII), passando pela ocupação colonial (séc. XVII e XVIII), pela fase imperial (séc. XIX) e alcançando a atual fase republicana no Amazonas e da Amazônia (a partir do final do século XIX à atualidade). Deve-se levar em conta, nesse cenário, o dinâmico processo de constituição de limites e das fronteiras na região, envolto em inúmeros conflitos, que somente tomou a forma atual no início do século passado, com o Tratado de Petrópolis (1903), antecedido pelo Tratado de Madri (1750), pelo Tratado do Pardo (1761), pelo Tratado de Santo Idelfonso (1777) e pelo Tratado de Badajós (1801).
Nesse sentido, abordar a problemática da “Segurança Pública e a História do Amazonas” requer, desde logo, observar o processo de composição geográfica da região, considerando a formação de seus limites, fronteiras, sua diversidade social (forma de vida em comunidades e sociedades das populações amazônicas) e as impactantes intervenções promovidas desde os tempos da disputa de território e colonização europeia à atual forma de ocupação da Amazônia, caracterizada por vários conflitos, eventos de violência, criminalidade e pela ineficácia da presença do Estado como mediador dessas tensões e fomentador do desenvolvimento social.
Característica da formação social da Amazônia, nela incluso o Estado do Amazonas, e um fator principal de violência e insegurança pública na região persiste sendo a logospirataria.
A logospirataria é processo de desestruturação sociocultural que resulta da violação a direitos fundamentais na forma de saque, de pilhagem, de apropriação indevida, de exploração irregular e de violentas disputas pelo domínio de recursos naturais, de recursos do patrimônio genético, de conhecimentos tradicionais e da força de trabalho, seja via condição análoga a de escravo seja via relações precarizadas de trabalho no interior da floresta. Em apertada síntese, a logospirataria é devoradora de culturas e outros “logos” socialmente diversos na região, usurpando direitos dessa sociodiversidade amazônica por vida da apropriação, do saque e da exploração irregular de recursos naturais, de recursos do patrimônio genético, de conhecimentos tradicionais e da mão-de-obra de população tradicional ou nativa.
Esse processo atravessa o tempo na Amazônia, estendendo-se aos dias atuais na forma de registro de patentes, de acesso irregular ao patrimônio genético e nas práticas de exploração abusiva do trabalho humano, além do contrabando, do descaminho e do crime de tráfico ilícito de drogas, de armas e de pessoas.
Frente a esse contexto, considerando a manifestação dos eventos insegurança pública de proporção histórica na região, destacam-se alguns processos de maior impacto na segurança pública no Estado do Amazonas:
- Saque e pilhagem de recursos naturais e de recursos do patrimônio genético;
- Apropriação indevida e, mais recentemente, irregular do conhecimento tradicional associado à biodiversidade;
- Exploração violenta, indevida e depois irregular (como crime), da mão de obra indígena, atualmente de comunidades tradicionais e agricultores;
- Tráfico ilícito de drogas, pessoas e armas, desde a época da conquista;
- Disputas pelo mercado do ilícito entre organizações criminosas (orgcrim’s), entre facções, entre traficantes e barrigas d’água (piratas de rio) e guerra contra as drogas: homicídios nas ruas (inúmeras execuções), nos rios (ex. tiroteios e mortes entre ribeirinhos e traficantes, desparecimento de colega delegado, assassinato de turista inglesa) e nos cárceres (chacinas em presídios em Manaus, sendo o último em 01.01.2017);
- Aumento do recrutamento de adolescentes e jovens pela economia do crime via organizações e facções criminosas: elevação das ocorrências e dos indicadores de criminalidade;
- Alto custo econômico, financeiro e social do combate apenas pela via repressiva (modelo polícia-judiciário-presídio) da violência, da criminalidade, da guerra contra as drogas, revelando-se cada vez mais insustentável;
- Funcionamento viciado e sistemicamente corrompido do modelo político e administrativo imposto: a logospirataria política.
Diante dessas questões, que envolvem amplamente fronteiras, comunidades ribeirinhas, populações tradicionais, revelam-se a debilidade institucional e a ineficácia do Estado brasileiro como características históricas dominantes, institucionalizadas e praticamente naturalizadas, desde os tempos remotos de formação social da Amazônia (ações historicamente insuficientes e muito aquém da demandada dos problemas).
Como atuar numa perspectiva de mudança desse cenário, com vista a superar essa violenta lógica histórica?
O ponto de partida talvez seja não confundir consequência e meio com a causa efetiva dos problemas de insegurança na Amazônia. Nesse sentido, ao lado da atuação policial e do sistema de justiça criminal e da punição carcerária, cumpre agir de modo a tornar desinteressante e economicamente inviável a prática da atividade ilícita, seja por via do controle social e policial seja por via da comunicação, da publicidade, da propaganda e do desmantelamento da logística do tráfico ilícito, ou seja, desestimular e desestruturar a cadeia produtiva e a infraestrutura das atividades ilícitas. São medidas crucias como ponto de partida para inviabilizar e desmontar a economia do crime na Amazônia.
Um modelo eficaz foi a bem sucedida campanha publicitária e ações institucionais contra o cigarro. Embora tenha levado alguns anos, tais meios eficientes ao mostrar a associação que há entre o consumo de cigarros e várias graves doenças, a baixa-autoestima e o prejuízo à imagem pessoal. Os resultados das ações de governo e campanhas contra o tabagismo e o cigarro foram bastante favoráveis quanto à redução do respectivo vício, ao enfraquecimento da economia do tabagismo sem ter sido necessário mover qualquer guerra armada contra o cigarro ou onerosos modelos de repressão bélica.
Apesar da economia das drogas ilícitas ter se convertido, em muitas localidades, em economia popular, os onerosos modelos de repressão policial-judicial-carcerária acabam por contribuir para reproduzir a insegurança, a violência e o crime, retroalimentando o ciclo da economia do ilícito e, ainda, servem para justificar investimentos e gastos públicos que criam a ilusão de que a solução reside apenas no aumento arsenais bélicos, de ampliação de forças polícias e do atual sistema de justiça criminal, de maior número de cárceres e da retomada da mitologia dos “salvadores da pátria”, que abre espaço a ditadores e tiranos. Uma irracionalidade sem tamanho que marca o ambiente social e institucional frente às mazelas de violência e criminalidade insolúveis no atual modelo vigente.
Por conta disso, simultaneamente à atuação do modelo repressivo “polícia-judiciário-cárcere”, Importa realmente considerar a implantação de projetos de inclusão pedagógica, social e desenvolver modelos de socialização (cultura de dignidade da pessoa humana, de cidadania e de valores humanos), bem como perseguir energicamente os propósitos, as alternativas e as possibilidades de soluções almejadas pela proposta de justiça restaurativa.
O emprego apenas do modelo repressivo nunca foi suficiente e não bastará para lidar com questões tão complexas. A polícia trata e combate eventos de insegurança (violência, crime e a ameaça de ocorrência dos mesmos) e não propriamente de segurança pública, embora as ações policial e judiciária possam contribuir para tanto. A sociedade brasileira padece bastante com a reiterada visão opressiva de segurança pública, a qual se revela equivocada e limitada, uma vez que reduz o problema de segurança pública à polícia, forças de repressão e de defesa. Isso tem se revelado um grande equívoco histórico e o “preço” pago pela sociedade é altíssimo, resultando no elevado número de assassinatos intencionais e diversas espécies de violência, que culminam em altos índices de criminalidade, conforme apontam os indicadores anuais.
A responsabilidade por tal concepção e prática decorre principalmente do modelo político-administrativo que ancorou as políticas públicas, inclusive as de segurança pública, a processos eleitorais quadrienais e que, em regra, formula essas políticas num horizonte muito limitado de tempo, de alcance social e humano, sobretudo questões que demandam tratamento continuado e efetivo, frente as quais as medidas e providências não podem apenas “fazer de conta” ou se converterem em meras promessas.
A problemática da insegurança pública não pode ser condicionada a uma irresponsável e irreparável lógica dos jogos eleitorais. Eleições livres e justas são essenciais à democracia, mas o que ocorre eleitoralmente no Brasil deixou há muito tempo de ser reflexo de um processo democrático, cívico e republicano, livre de abusos econômicos e de viciados grupos partidários.
A lógica da jogatina eleitoreira tomou conta de todos os espaços institucionais, esferas e poderes, convertendo tudo num grande “circo de faz de contas” e sem efetividade. Não por acaso a política e seus atores constituem o principal problema de segurança pública do país, frequentemente associados a grupos criminosos, milicianos, cartéis, sindicatos etc. O resultado é o deplorável quadro de questões essenciais, tal como a situação de insegurança pública no país, protagonizada por organizações criminosas, às vezes empoderadas em esferas e poderes estatais, e comandada por facções prisionais, por milícias e a pela robusta economia dos ilegalismos globais.
Enfim, para lidar com isso não basta polícia, exército, forças repressivas e presídios, mas ações estatais sistêmicas e integradas que alcancem efetivamente as demandas de insegurança pública que afligem a sociedade amazonense, amazônica e brasileira, desde suas fronteiras aos centros urbanos, municípios e grandes metrópoles, em sua diversidade de gentes e tipos sociais. É urgente que se possam tecer os fios que nos libertem do labirinto de violência e de criminalidade que se abate, oprime e torna insegura toda a sociedade brasileira.
*Pontes Filho é doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia.
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