Por Leonardo Sanchez, da Folhapress
CANNES – Tilda Swinton caminha pelos corredores de um hotel na Riviera Francesa com sua pele pálida e uma bata bufante, num tom de bege que combina com a cor de seus cabelos. O tecido esvoaçante se esquiva de um carrinho de limpeza, depois de cadeiras e, enfim, de jornalistas, numa coreografia fantasmagórica que torna aquela figura etérea, tão sobrenatural quanto a história que levou a atriz ao último Festival de Cannes.
“Era uma Vez um Gênio” foi exibido fora de competição, mas nem por isso deixou de ter uma das sessões mais disputadas do evento que aconteceu em maio. Agora, é um dos primeiros longas da seleção francesa a chegar aos cinemas brasileiros, nesta quinta-feira.
Dirigido por George Miller, em seu primeiro filme desde o sucesso de “Mad Max: Estrada da Fúria”, de sete anos atrás, o longa acompanha Alithea, a professora de linguística vivida por Swinton. Ela é cética, solitária e conformada com a vida sem sal que leva.
Numa viagem a Istambul para participar de uma conferência, ela escava uma pilha de quinquilharias em busca de um suvenir, até encontrar uma garrafinha azul, lar de um gênio da lâmpada, ou djinn, que oferece a ela três desejos.
Um ser racional, ela sabe que esse tipo de história sempre termina com uma lição de moral e, em vez de saciar algum anseio, decide conversar com a divindade e ouvir sobre seus mestres anteriores.
Já acomodada numa enorme mesa redonda, ao lado de Miller, Swinton conta o que a fascinou em “Era uma Vez um Gênio”. É uma ode à contação de histórias, resume ela, antes de se animar e prolongar a justificativa numa minuciosa tese sobre o porquê de sermos mais “Homo narrans” que “Homo sapiens”.
“Nós precisamos de narrativas o tempo todo. Todos nós aqui inventamos uma história para hoje. Estamos aqui, depois vamos almoçar e quem sabe ver um filme”, diz ela à meia-dúzia de jornalistas que a cercam.
“Isso ficou especialmente claro nos últimos dois anos, quando a pandemia destruiu as narrativas que muitos haviam criado. Quem planejou fazer uma festa de casamento ou uma viagem não pôde. O trauma gerado por essas frustrações só escancara o quanto somos dependentes de narrativas. Não dependemos só das fictícias, que vemos no cinema, mas também das reais”.
Chega a ser irônico, diria mais tarde seu colega de elenco, o intérprete do djinn, Idris Elba, num outro quarto do mesmo hotel. “Nós gravamos este filme num momento em que todo o mundo havia se fechado por causa da pandemia. Ninguém podia ir ao cinema. E então cá estamos, reunidos novamente num festival que atrai pessoas apaixonadas pela arte de contar histórias, para apresentar um filme sobre a arte de contar histórias”, afirma o ator.
Também é num quarto de hotel que boa parte de “Era uma Vez um Gênio” se passa. Apesar de o nome original, o menos simplista e óbvio “Three Thousand Years of Longing” – algo como 3.000 anos de anseio –, sugerir uma longa linha do tempo, a trama não sai muito da conversa de poucas horas entre Alithea e o djinn.
O longa é verborrágico, filosófico até, com Swinton e Elba enrolados em toalhas enquanto discutem amor, obsessão, ambição, sabedoria, traição e muitos outros temas que atravessaram a longuíssima vida da entidade e das mulheres que já foram suas senhoras, como a rainha de Sabá ou a nora do sultão Solimão, o Magnífico.
Vender o projeto, baseado numa relação tão íntima, para algum estúdio não foi tarefa fácil, conta George Miller. Por isso, o cineasta precisou encontrar uma maneira de embalar as grandes discussões que o filme levanta numa fachada de épico fantasioso.
Ele pegou o texto no qual “Era uma Vez um Gênio” se baseia – escrito pela autora inglesa A. S. Byatt – e saturou cores, agigantou cenários e costurou figurinos extravagantes para as partes em que o djinn rememora as várias vezes em que se apaixonou, séculos atrás.
Assim, o coração da trama pode até estar naquele pasteurizado quarto de hotel em que a personagem de Swinton se hospeda, mas isso não impede que o filme vá além em cenas opulentas e até sensuais que o transformam num conto de fadas para adultos, com o devido visual onírico e atraente.
Nem todos gostaram do que viram, no entanto. No Twitter, acusações de orientalismo pipocaram, alegando que “Era uma Vez um Gênio” apresenta uma visão exótica e eurocêntrica das mitologias e dos personagens históricos que movem a sua trama.
Elba concorda que o roteiro não segue à risca a simbologia dos djinns para o mundo árabe -no qual ele não concede desejos, pelo contrário, é tido como uma figura maldosa, espertalhona. Mas conta que houve um cuidado para não recorrer a estereótipos.
Se antes sua ideia era se esconder por trás de um nariz enganchado, sobrancelhas expressivas e uma voz grave, Miller o orientou a recusar todas as representações de gênios da lâmpada consagradas no cinema e na televisão. A “genialidade” serve mais como atalho para falar de contação de história, já que o personagem em si é praticamente humano -ao menos, fica bem claro, deseja ser um.
Miller, afinal, precisava de um personagem mágico no centro do filme, para poder discutir, também, o poder que o sobrenatural exerce sobre os humanos. Essa é uma das principais questões que assombram o djinn de Elba, já que foi o excesso de informação e de tecnologia dos tempos atuais que relegaram sua lâmpada a uma lojinha de suvenir por tanto tempo.
É como em outra obra que brinca com o fascínio que a contação de histórias e a imaginação exercem, “Peter Pan”. Numa das passagens mais lembradas do clássico de J. M. Barrie, Sininho está prestes a morrer, mas pode ser salva se as crianças acreditarem que fadas existem.
Em “Era uma Vez um Gênio”, o mundo contemporâneo, personificado no ceticismo de Alithea, parece perder, também, a capacidade de crer no fantástico, o que mexe com a cabeça do personagem de Elba. “Nós só existimos se formos reais para os outros”, diz ele em certo ponto.
“Nós estamos sempre mudando, evoluindo, adquirindo novos conhecimentos. Em outras palavras, se eu mostrasse meu celular para o meu avô, lá atrás, ele diria que isso é magia. Antigamente, acreditavam que pessoas com esquizofrenia eram assombradas por demônios ou que estudiosos eram bruxos”, afirma Miller. Apesar do filme, no entanto, o cineasta acredita que não somos tão racionais quanto pensamos.
“Mitologias mudam e, quanto mais sabemos, mais profundos os mistérios se tornam. Nós sabemos que há buracos negros no espaço, mas mal podemos estudar isso. Os mistérios de hoje só se ampliaram, ficaram mais intensos, e nós continuamos buscando formas de explicar”, conclui.