Inácio Araújo, da Folhapress
SÃO APULO – Não seria difícil acusar “Pureza” de ser um filme tradicional demais. Afinal, ele renega a tradição que criamos desde o cinema novo de um cinema que aborda as questões nacionais de um ponto de vista intelectual e abstrato, ao mesmo tempo em que produz linguagem, inovação, repertório.
E “Pureza” não é nada disso. Renato Barbieri optou por tratar o tema da escravização de cidadãos no norte do Brasil da maneira mais tradicional do mundo. Seu filme fixa-se no drama da personagem vivida por Dira Paes, Pureza Loiola – mulher que, nos anos 1990, sai em busca de seu filho desaparecido.
Pureza emprega-se como cozinheira em uma fazenda com exemplar organização escravista – proprietário distante, feitor, jagunços e trabalhadores destituídos de quaisquer direitos.
Pureza absorve o drama deles como seu, pois imagina que não longe dali está seu filho. Como cozinheira tem um estatuto superior, o que lhe permite ir a uma cidadezinha próxima e a partir de então mexer os pauzinhos na busca pelo filho – o que implica tornar conhecida a situação dos escravizados.
Essa situação, diga-se, não é propriamente uma novidade. Quem quis conhecê-la conheceu, ao menos desde que o português Ferreira de Castro publicou “A Selva”, relato de sua própria escravização na era da borracha na Amazônia. Publicou e teve sucesso mundial, diga-se.
O que nos traz então o filme de Barbieri? Nos traz a imagem. Porque é muito diferente ler sobre algo e o cinema, que nos dá a ver determinados acontecimentos. Eis o que torna válida a opção de Barbieri por um filme perfeitamente tradicional.
Trata-se de mostrar algo que nunca vimos, com intensidade emocional centrada em uma personagem e em seu heroísmo (sim, à americana), trocando a abstração pela exibição de uma situação tão concreta quanto brutal e cruel.
Sim, pode-se dizer que “Pureza” à sua maneira realiza o ideal de André Bazin, onde o fato importa mais que a maneira como é mostrado. Desse modo, “Pureza” não pode ser visto como um objeto no mundo dos espetáculos nem como obra de arte ou algo assim.
Mas por aquilo que é -um fato político com intenção de atingir um público amplo e abordar duas questões básicas da incivilização brasileira: o déficit educacional estrutural (que torna os trabalhadores objetos indefesos diante dos traficantes de escravos) e a ganância desenfreada de gente para quem produtividade se confunde com escravismo ou condições infames de trabalho.
Então ficamos assim – “Pureza” sofre de um “benfeitismo” quase fanático, que o torna antiquado e o limita do ponto de vista cinematográfico. Ao mesmo tempo, e justamente por isso, pode aspirar (ao menos aspirar) a atingir um grande público, e atingi-lo não apenas emocionalmente, mas também intelectualmente. Nesse sentido, presta um serviço inestimável, afirma-se pela decência de intenções e relevância das questões apresentadas.
Em resumidas contas: Renato Barbieri não fez um grande filme, à altura das aspirações maiores do século 21, mas que deve ser visto justamente por tudo que se apresenta a nós no século 21.