A contemporaneidade pode ser sintetizada e descrita pelo grau máximo de desenvolvimento do sistema capitalista, já que – com exceção de dois ou três países que se opõe à ordem – o mundo todo é regido pelas lógicas fundantes desse molde de configuração social.
De forma básica e grosseira é possível resumir o capitalismo atual de duas maneiras abstratas: o Estado de Bem Estar Social, e as políticas neoliberais. Dado que a desigualdade – isto é, a existência de classes sociais – é inerente à própria socialização capitalista, é preciso por parte das classes dominantes – assim como cada época – estabelecer um conjunto de ideias responsáveis pela legitimação desse modo de vida, para que aquele que está por baixo, não possa ver nem sentir o tamanho do peso daquele que está em cima, apoiado em seus ombros. E que só se mantem assim, por estar apoiado em seus ombros ou suas cabeças.
De forma clara: como é possível convencer uma população inteira que transformar serviços ‘gratuitos’ fornecidos pelo Estado em serviços pagos, sob responsabilidade das empresas privadas (que agem em nome da acumulação), é, ‘na verdade’, a melhor coisa que poderia acontecer para o trabalhador? Como fazer pensar ser legítimo que direitos garantidos se transformem em despesas?
O nome desse conjunto de falsidades, que legitimam e naturalizam interesses de classe, é ideologia. E no caso vigente, se trata da ideologia neoliberal. Aquela que trata de destituir a configuração mais justa do capital, o Estado de Bem Estar Social, fazendo-o parecer muito caro, justamente quando este possui seus méritos ao fazer direitos básicos virarem maneiras de circulação e crescimento econômico.
Dessa forma, como se configura essa ideologia no nível subjetivo e popular de forma tão vasta e tão efetiva? O ponto central que sustenta essa forma de (não) pensar é o de ‘empreendorizar’ o sujeito. Fazendo parecer, cada um, uma pequena empresa: Cada pessoa concorre com as outras, cada qualificação é um investimento, das famílias ou de si mesmo. Cada incerteza, é um risco de prejuízo. Comumente a qualidade do caráter da pessoa é medida pelo seu nível de produtividade. Enfim, forma-se um ideal empresarial de si, e, portanto, dos outros. Cada sujeito é uma empresa, que pode dar lucros e prejuízos.
Nesse passo, cria-se uma das maiores fábulas que o mundo moderno fora capaz de produzir: a meritocracia. Aquele engodo que faz ser possível crer que pobres são pobres porque se esforçam pouco, e que, os ricos – aqueles que ‘venceram na vida’ – possuem tal status por seu grandioso mérito, e nada mais. Afinal, seu curso de inglês, seu M.B.A., seu colégio e cursinho particular, e sua ‘boa aparência’ nada tem a ver com as supostas vantagens que possui em relação aqueles que não tiveram a mesma sorte.
Com tais qualificações, o indivíduo – que agora não é mais um trabalhador que vende sua força de trabalho e sim um microempreendedor – pode então ‘competir livremente’ e prestar serviços para uma empresa maior – que também não o explora mais: agora a empresa lhe dá a chance de ‘vencer na vida’.
Somente uma ideologia assim poderia ser capaz de transformar um sujeito como Eike Batista em um famoso e bem sucedido brasileiro, ícone de sucesso e exemplo para seus admiradores. Seria uma sorridente Eike Maravilha dos negócios, a ponto de dar entrevistas de como gerir empresas, ser amigo de celebridades, receber apreços de políticos como Eduardo Paes, Sérgio Cabral, Dória, Lula e Dilma. Eike era tido como um dos maiores brasileiros de todos os tempos.
O empresário – preso recentemente por corrupção ativa e lavagem de dinheiro – já nasceu milionário. Seu pai, Eliezer Batista, fora um engenheiro que presidiu estatais como a Vale do Rio Doce, e seu filho, Thor Batista, ao atropelar e matar um homem com sua Ferrari, teve punição digna de risadas se comparada com as punições dadas aos sujeitos das camadas menos favorecidas por crimes bem menores. E tais fatos já seriam suficientes para desconstruir o delírio meritocrático, se não é, é justamente pela efetividade da ideologia.
A questão que fica é a seguinte: como pode um empresário como Eike, que cometeu um crime monumental em termos de prejuízo para o Estado, ser tratado, por todos, de forma tão civilizada, enquanto, milhares de pessoas, pretos, prostitutas e pobres, a triangulação do P de perversidade são sistemática e diariamente tratados com base em violações de direitos humanos pelo mesmo Estado que fora prejudicado por crimes como de Eike, e tão ignorados e subestimados pela mesma sociedade que festeja está enganação travestida de empresário?