Por Daniele Madureira, da Folhapress
SÃO PAULO – Avôs e avós costumam ser lembrados por provérbios como “A justiça tarda, mas não falha”, “pau que nasce torto, morre torto”, “beleza não se põe à mesa” -sentenças com um fundo moral, dadas como orientação às novas gerações. Paula Caldeira, 46, porém, lembra-se de receber um conselho inusitado da avó, Adelina: “Compra agora, depois a gente vê como paga.”
Hoje Paula passa por apertos financeiros. Microempresária, ela tinha um buffet que quebrou durante a pandemia. Com dívidas, se viu obrigada a procurar um emprego fixo e hoje trabalha como assessora em uma instituição de ensino.
Não renegociou todos os débitos, 20% do seu salário vai direto para parte das dívidas em atraso, seu nome ainda está no SPC (Serviço de Proteção ao Crédito) e, por conta do seu baixo score (pontuação que indica a adimplência do pagador) no mercado, só lhe restou um único cartão de crédito, com limite baixo.
Paula não culpa a avó, mas sabe que nunca aprendeu a lidar com o dinheiro. “Não peso as consequências dos meus gastos”, diz ela, que ainda tenta, com um sócio, retomar os serviços do buffet.
Ela já cogitou sofrer de “fobia financeira”: expressão criada pelo psicólogo britânico Brendan Burchell, professor da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, para indicar quem tem repulsa a qualquer contato com as próprias finanças e sofre um mal-estar físico quando é obrigado a isso.
“Só de pensar nas minhas dívidas, tenho palpitação e suo frio”, diz Paula.
Independentemente de ter ou não a fobia, Paula engrossa o time de devedores brasileiros, que vem crescendo mês a mês. Segundo o mais recente levantamento da CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo), antecipado para a Folha, em agosto deste ano, o nível de famílias endividadas bateu um novo recorde: 79%, contra 78% de julho. Em agosto de 2021, era 72,9%.
No mês passado, 29,6% das famílias brasileiras estavam inadimplentes (frente a 25,6% de um ano atrás), enquanto uma fatia de 10,8% admitem que não vão pagar os débitos (eram 10,7% em agosto de 2021).
A sociedade ainda enfrenta os efeitos da pandemia que paralisou grande parte das atividades econômicas. Na retomada, muitos negócios não voltaram ao mesmo ritmo de 2019, antes da Covid. Mas economistas e especialistas em psicologia financeira acreditam que a atual crise não é o principal motivo para o endividamento da população.
Afinal, por que gastamos mais do que ganhamos?
Não fomos treinados para fazer escolhas
“O dinheiro é um papel pintado ao qual damos vida e é capaz de comprar muito mais do que bens e serviços”, diz Paula Sauer, economista e mestre em administração pela PUC-SP, doutoranda em comportamento do consumidor pela ESPM.
“Ele diz aos outros qual o seu status social e lhe dá liberdade de escolha: desde o que você vai comer na hora do almoço até a decisão de deixar um casamento abusivo ou um emprego que te faz infeliz”, afirma.
Nesse contexto, diz ela, é natural que as pessoas associem o dinheiro à conquista da felicidade. “Mas nossos recursos são finitos, enquanto os nossos desejos -ou o que a publicidade e as redes sociais vendem como se fossem nossos- são infinitos.”
“Ao mesmo tempo, nós não somos treinados a fazer escolhas. Mas observamos a relação que as pessoas que admiramos têm com o dinheiro. Vamos imitar o seu comportamento ou, ao contrário, evitá-lo, se presenciarmos alguma angústia envolvida.”
Para Vera Rita de Mello Ferreira, doutora em psicologia social pela PUC-SP e especialista em psicologia econômica, o alto nível de endividamento da população mostra o quanto não estamos preparados para lidar com dinheiro. “Isso gera uma tensão que, muitas vezes, leva as pessoas a fazerem escolhas equivocadas. Desde cair em golpes financeiros até comprar por impulso quando não têm dinheiro.”
De acordo com a especialista, presidente do Iarep (International Association for Research in Economic Psychology), e que está à frente da consultoria Vértice Psi, em São Paulo, o dinheiro sempre está carregado de representações emocionais.
“As pessoas gastam mais do que ganham por conta do desejo: você está insatisfeito, mas se depara com um produto que te encantou. Na hora, pensa: ‘É isso que vai me trazer felicidade, alívio’. E compra”.
10 notas de R$ 10 versus 1 nota de R$ 100
A especialista em psicologia econômica chama a atenção ainda para a “contabilidade mental” que as pessoas adotam, a fim de encaixar uma nova conta no orçamento.
“O que costuma durar mais na carteira: 10 notas de R$ 10 ou 1 nota de R$ 100? Com certeza, a nota de R$ 100”, diz. “Temos uma grande dificuldade em vincular o gasto atual com a sua consequência futura. Você gasta várias notas de R$ 10, achando que é só uma nota. Daí o endividamento com as compras parceladas”, diz ela. “É como o fumante, que diz que vai fumar ‘só um cigarrinho’, mas acaba com o maço.”
Vera chama a atenção ainda para a fartura de oferta de crédito, que dá a sensação de que a pessoa pode tudo. “A psicologia econômica diz que o problema de crédito e endividamento são os dois lados da mesma moeda. Uma pessoa só vai se endividar se tiver crédito. Se ninguém oferecer, ela não se endivida.”
Não por acaso, o levantamento da CNC apontou o aumento das dívidas em cartões e carnês de lojas. A alta se deu principalmente no grupo de maior renda: 16,8% das famílias que ganham mais de dez salários mínimos têm dívidas nesta modalidade (contra 13,8% há um ano). Já entre as que ganham até dez salários, 19,8% estão com dívidas nos carnês de lojas (frente a 19,1% de agosto de 2021).
“Com a elevação dos juros, as famílias buscam alternativas mais baratas ao cartão de crédito tradicional”, diz Ízis Ferreira, economista da CNC. “As pessoas estão se endividando por um prazo um pouco mais curto, cerca de 6,9 meses agora, contra 7,3 meses de um ano atrás”, diz ela. “Por outro lado, o endividamento de longo prazo, para bens como carro e casa, vem caindo”.
Por que a gente trabalha?
Na opinião do administrador Diogo Angioleti, especialista em finanças e comportamento do sistema de cooperativas de crédito Ailos, ao comprar supérfluos, a pessoa pega atalhos para lidar com as próprias frustrações. “A gente acha que sabe mexer com dinheiro, mas não fomos educados para isso, e acabamos cada vez mais endividados e frustrados.”
A saída passa, necessariamente, pela educação financeira. “A BNCC [Base Nacional Comum Curricular] incluiu no final de 2017 educação financeira entre os temais transversais que devem constar nos currículos de todo o país. Mas é preciso fazer mais, a disciplina não está no eixo obrigatório”, diz.
Para Angioleti, ao trazer o tema para o contexto pedagógico, é possível ajudar as próximas gerações a quebrarem o tabu de falar sobre dinheiro, algo que tem fortes raízes históricas e culturais.
A primeira coisa a fazer é desmistificar ainda em casa essa ideia, diz Paula Sauer.
“Quando uma criança pergunta para a mãe ou o pai por que eles têm que sair para trabalhar, a resposta não é ‘para ter dinheiro para comprar comida, brinquedos, passeios'”, afirma. “Se você responder isso, a criança vai associar o trabalho a algo penoso. O correto é dizer que vai trabalhar porque gosta do que faz, porque vai ajudar outras pessoas de alguma maneira, e que de quebra ainda vai conseguir um dinheiro para juntos fazerem coisas legais.”
Mariana Rocha, principal executiva de marketing da fintech Mozper, concorda. “As crianças precisam entender que o trabalho é algo prazeroso, mas que não vai lhes dar todo o dinheiro do mundo”, diz ela.
A proposta da startup é ajudar os pais a educar crianças e adolescentes para tomar decisões financeiras responsáveis, a partir da adoção de um cartão de crédito pré-pago, administrado via aplicativo por um adulto.
“Mas não existe inclusão financeira sem educação. Não basta dar um cartão, é preciso ensinar a lidar com o dinheiro”, diz Mariana.