Informação dos “jornais mais repeitados do País” dava conta, nesta semana, que a presidente Dilma Rousseff aproveitará os 5 minutos a que tem direito em reunião da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre mudanças climáticas, nesta sexta-feira, 22, para denunciar ao mundo que o impeachment contra ela é um golpe à democracia brasileira. A notícia, cuja fonte é atribuída a assessores da presidente, causou alvoroço no meio político, com manifestações, inclusive, de ministros do Supremo Tribunal Federal, que foram procurados pela imprensa para falar sobre o assunto.
Vejamos a o que disse o ministro mais antigo do STF, Celso de Mello: “Ainda que a senhora presidente da República veja, a partir de uma perspectiva eminentemente pessoal, a existência de um golpe, na verdade, há um grande e gravíssimo equívoco, porque o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal deixaram muito claro que o procedimento destinado a apurar a responsabilidade política da presidente da República respeitou, até o presente momento, todas as fórmulas estabelecidas na Constituição”.
A conversa do ministro – assim como a fala do ministro Gilmar Mendes, um torcedor ferrenho pela queda da presidente – lembra as discussões de bêbados, quando um diz uma coisa e o outro responde com outra, totalmente avessa ao assunto. Não é o rito ou as fórmulas estabelecidas na Constituição que estão sendo questionados pela presidente, mas o objeto, ou o crime do qual é acusada. Os argumentos para tirar a presidente do cargo, na Câmara dos Deputados, foram tão diversos que o mais esclarecidos dos eleitores teve dificuldade de entender o motivo que levou os deputados a votar em favor do afastamento. A tônica dos discursos dos deputados era a corrupção e a situação econômica do país. Foram raros os votos justificados pelas chamadas “pedaladas fiscais”. Ao fim, ficou a impressão de que Dilma está perdendo o mandato por corrupção.
As tais pedaladas, que são apresentadas como o único crime (crime de responsabilidade) praticado por Dilma Rousseff, não goza de unanimidade entre juristas. A peça de acusação é tão frágil diante do festival de enxovalhamento que se viu na Câmara dos Deputados, que Dilma sairia do processo sem qualquer arranhão se houvesse um julgamento justo. Mas as pedaladas fiscais não importavam. Nem foram objeto de discussão. Bastou aos parlamentares com sangue nos olhos os argumentos dos autores do pedido de impeachment. Nem quiseram ouvir a defesa. Nada do que foi dito em contrário foi ouvido.
A decisão já estava tomada muito antes de julgamento do processo começar, muito antes do pedido de impeachment chegar à Câmara dos Deputados. Portanto, não precisavam ouvir mais qualquer argumento. Por isso, tentaram impedir que o Advogado-Geral da União apresentasse a defesa da presidente, como tentaram impedir que um jurista apresentasse uma tese contrária à dos autores do pedido. Vencidos pela vontade do presidente da Comissão do Impeachment, os deputados ouviram o jurista “de costas” ou com as mãos nos ouvidos.
Aliás, é bom que se diga quem é o autor do pedido de impeachment: Miguel Reale Jr., ex ministro de Fernando Henrique Cardoso, a maior liderança do PSDB, o partido que perdeu quatro eleições consecutivas para o PT (duas para Lula e duas para Dilma) e não se conformou com a derrota de 2014. Foi o PSDB que pediu a recontagem dos votos, desconfiado de que o TSE poderia ter fraudado as eleições; depois, ingressou na Justiça Eleitoral pedindo a cassação do mandato de Dilma e Michel Temer por irregularidades na campanha de 2014 (processo até hoje não julgado pelo TSE). Depois, quando as ruas pedia “Fora Dilma”, foi o partido que recuou no propósito de afastar a presidente, porque viu que naquele momento não teria forças para derrubá-la no Congresso. Quem acredita que Miguel Reale Jr. agiu por vontade própria, pensando no Brasil, ao preparar a tese que ora leva à queda de Dilma? Para dar um ar de imparcialidade, Miguel Reale e os seus chamaram para assinar o pedido o jurista Hélio Bicudo e uma professora universitária.
O pedido de impeachment encontrou nas pedaladas fiscais o único viés capaz de ajudar a oposição no propósito de varrer a presidente e o PT do comando do governo. Mas a peça jurídica de Miguel Reale Jr. tinha um problema: incluía as pedaladas fiscais praticadas em 2014, portanto, no mandado passado, e a Constituição só permite que se afaste um mandatário do Poder Executivo por crimes praticados no atual mandato. Não houve problema nenhum. O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), que se tornou um inimigo pessoal da presidente da República desde que foi denunciado pelo Ministério Público Federal por lavagem de dinheiro e outros crimes, deu um jeito: definiu que Dilma poderia ser julgada por “pedadas” praticadas em 2015, em menor quantidade que em 2014, mas tão graves quanto aquelas, na avaliação do algoz. E assim se fez.
O PMDB vendo que tudo aquilo era muito bom, comprou a briga. Avaliaram os dirigentes do partido, em especial o vice-presidente da República, Michel Temer, que o PMDB poderia sair da condição de coadjuvante e assumir o papel principal. E assim estão fazendo. Desembarcaram do governo, entregaram os cargos nos ministérios, e passaram de aliados a adversários de Dilma Rousseff. Com a perda de apoio do principal partido no Congresso, o governo, naturalmente, foi perdendo outros aliados, que já enxergavam a iminente derrota e tratavam de fazer a vontade do próximo grupo a assumir o poder.
Michel Temer, antes mesmos da votação do impeachment na Câmara dos Deputados, já discutia o fatiamento de cargos com partidos que julga aliados para o futuro governo. É esse Michel Temer que Dilma tem chamado de golpista, e é essa trama armada para derrubá-la do poder que tem classificado de golpe contra a democracia, porque “tira uma presidente legitimamente eleita pelo voto popular” para colocar no governo uma turma que nunca se esforçou para ganhar o voto do povo brasileiro, até porque o PMDB não tem nomes para disputar a Presidência da República, desde Ulisses Guimarães (que disputou o cargo em 1989 e ficou muito mal colocado).
Não é o processo em si que caracteriza o golpe, é a falta de crime. Mas, como já foi dito, o crime é o que menos importa. Diante dos fatos, não há que se discordar: é golpe e precisa ser denunciado aos quatro cantos do mundo, pelo bem da democracia brasileira, arranhada até a alma.
Valmir Lima é jornalista, graduado pela Ufam (Universidade Federal do Amazonas); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia (Ufam), com pesquisa sobre rádios comunitárias no Amazonas. Atuou como professor em cursos de Jornalismo na Ufam e em instituições de ensino superior em Manaus. Trabalhou como repórter nos jornais A Crítica e Diário do Amazonas e como editor de opinião e política no Diário do Amazonas. Fundador do site AMAZONAS ATUAL.
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