No Brasil, vivem-se dias de profundo definhamento da produção artístico-cultural. Confunde-se desenvolvimento cultural com política de propaganda, conteúdos de mídia social, internet e eventos oficiais. Restringem-se os incentivos a projetos que praticamente copiam padrões culturais ultrapassados. É grave desserviço ao desenvolvimento sociocultural que culmina na restrição de oportunidades e na ampliação da insegurança pública.
Nitidamente percebe-se que a cultura não é prioridade para o atual governo federal. E que é tratada mais como um fardo e uma onerosa distração do que como algo que mereça alguma atenção prioritária institucional. Na prática, algo que pode ser até mesmo dispensável ou reduzido à mera propaganda governamental. Uma postura asfixiadora do setor de produção artístico-cultural.
Em tempos de pandemia, a produção cultural teria um papel ainda mais relevante para a integração da sociedade e para a saúde coletiva e individual, inclusive no que se refere à sanidade mental. No entanto, observa-se que tudo se reduz à iniciativa privada, fomentadora de lives e outros produtos culturais do gênero digital, mas sempre muito limitados. A cultura simplesmente sofreu um apagão quando se trata de iniciativas públicas do atual governo.
Nesses quase dois anos de pirotecnia e charlatanismo político, a área das políticas culturais simplesmente não existiu nem disse a que veio. É mera peça publicitária. Ao país foi meramente imposto um nivelamento medíocre, que segue o padrão rasteiro dos discursos oficiais e da interlocução política. Um recuo cultural, científico e artístico sem precedentes que isola o país nas Américas como um pária não só ambiental como também cultural.
Mesmo antes da pandemia, a atual política cultural não promovia sequer a realização de eventos culturais relevantes. As festas literárias, as feiras culturais, eventos regionais e manifestações folclóricas vêm simplesmente definhando e sendo dolosamente esvaziadas, sendo substituídas por subprodutos do autoritarismo governamental. As fontes e expressões culturais, artísticas, populares vêm sendo brutamente desprestigiadas pelo governo brasileiro.
“Cultura” tem se restringido ao que oferecem as redes sociais e a internet. Embora haja uma diversidade de conteúdos e produtos nas redes sociais, eles não correspondem à ideia de fontes culturais, expressa na Constituição Federal. O impacto sobre a produção editorial é devastador, assim como sobre as artes plásticas e à formação de leitores. O país vai rapidamente perdendo o pouco que havia conquistado em termos de preparação de leitores. Enquanto as tiragens de obras de Machado de Assis, editadas em língua inglesa, esgotam num único dia nos Estados Unidos, aqui, no Brasil, fomenta-se o obscurantismo e o apagamento da memória literária, histórica, sociológica e científica da vida nacional.
Nenhuma ação ou medida cultural de referência foi adotada, nos últimos anos, no sentido de promover o desenvolvimento das culturas local, regional e nacional, sobretudo numa perspectiva da inclusão e tolerância cultural, que contribua para promover a compreensão de princípios éticos fundamentais à convivência social de um país tão diverso e plural como o Brasil. Como então cogitar a valorização de um processo social assentado na formação da cultura de justiça, de solidariedade, de liberdade, de cidadania, de sustentabilidade, da dignidade humana?
Enquanto isso, mesmo em meio à pandemia e à sonegação de informações, alguns indicadores de violência e de criminalidade aumentam vertiginosamente pelo país, principalmente no que diz respeito à violência doméstica, contra a mulher, contra idosos, contra vulneráveis sociais.
A ausência de efetivas políticas de cultura no Brasil aprofunda as desigualdades sociais e a problemática ligada à insegurança pública. Não importa se a juventude está mergulhada em atividades ilícitas, no tráfico de drogas e na falta de perspectivas. Não importa se os homicídios e as formas de violência explodem. Não importa a irrefreável truculência praticada contra adolescentes, jovens e mulheres, sobretudo em situação de vulnerabilidade. Não importa se alternativa é somente a repressão policial e carcerária sem tratamento social e cultural algum. Não importa se a polícia que mais mata é também a que mais morre. Não importa! Simplesmente, não importa… As fake news forjarão a memória que prevalecerá. E a história dos vencedores talvez nos faça esquecer o tempo de George Floyd enquanto vamos sendo lentamente asfixiados.
A vida “cultural” reflete a alienação governamental quanto às reais necessidades da população. Mas basta ao poder central ir reeditando, no automático, o velho “pão e circo” e seus enlatados, agora em múltiplas versões digitais. E manter a sociedade brasileira na rota do subdesenvolvimento cultural e social, com evidentes sinais de decadência no precipício do obscurantismo e do autoritarismo. Cárcere a céu aberto que asfixia a perspectiva daquele que deveria ser um país, uma República, uma democracia.
Até quando sobreviveremos asfixiados pela pandemia da “fast cult” e da pós-verdade? Quando atravessaremos as trevas em direção ao nosso tardio renascimento cultural? Não há respostas, pois não há horizontes. Por isso, mais que antes, faz sentido a emergência de Mário Quintana:
Emergência
Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
Esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
Para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.
(Mário Quintana)
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