Violar a autonomia, interferir, vazar e outras formas de prejudicar uma investigação, em especial policial ou criminal, pode causar insegurança pública, instabilidade política e frustrar a democracia.
Garantir a autonomia de investigação, especial da criminal, é condição para controlar abusos de poder. É instrumento essencial para preservar o equilíbrio entre os poderes, a licitude e isenção dos procedimentos, a qualidade do funcionamento das instituições democráticas, dentre outras coisas.
Nestes tempos pandêmicos, persegue-se a autonomia de órgãos, procedimentos e investigações encarregadas de velar pela defesa da legalidade, da probidade administrativa e princípios essenciais à continuidade da experiência que aponta para uma perspectiva democrática na relação entre Estado e Sociedade.
Desde o ano passado (2019), vem-se observando certas medidas para reduzir a autonomia de órgãos de investigação (ex-Coaf ou atual UIF, PF, Receita) e o desaparelhamento de órgãos de fiscalização (como o Ibama, Instituto Chico Mendes, Funai). Ao mesmo tempo, tem-se ameaçado jornalistas, a liberdade de expressão, flertando com a censura e cogitado um novo AI-5. Mesmo no contexto de pandemia do novo coronavírus, incentivam-se aglomerações públicas e atos de protesto contra instituições do regime democrático. Com base em redes de disseminação de fake news como método de formar opinião e manter-se na disputa pelo poder, fomenta-se a polarização entre grupos políticos e a divisão do país. Tenta-se aliciar os militares e aparelha-se o Estado brasileiro com quadros funcionais oriundos das forças armadas.
Aos poucos, vai ficando cada vez mais claro o investimento em situações voltadas para produzir instabilidades políticas tão graves que possam justificar o retrocesso a outro degenerado regime de força, ancorado nos militares e agora também nas milícias. Parece não haver mais um só dia em que a democracia brasileira não seja vítima de medidas ardilosas, dentre as quais os ataques à autonomia da Polícia Federal, as tentativas de interferência em investigações policiais, financeiras e criminais, e a busca de garantir que fiquem impunes crimes cometidos por suspeitos ligados ao governo federal, particularmente ao atual ocupante da presidência da República.
Esses perigosos tempos de perseguição à autonomia investigativa e ao controle de abusos de poder evidenciam certa tendência de recuo a tradições políticas pré-contemporâneas do poder absoluto, do poder abusivo e violento, do poder obscurantista. Práticas consideradas atualmente ilícitas e atentatórias às perspectivas de um regime aberto à participação, à transparência, ao respeito à pluralidade e à dignidade humana. Mas que podem ser retomadas.
As polícias têm atuação relevante e essencial à ordem social e à segurança pública. Em se tratando da função de polícia judiciária, as Polícias Civis nos estados-membros e a Polícia Federal na União cumprem relevante papel voltado ao federalismo cooperativo e à defesa da democracia brasileira.
Às polícias judiciárias, civis e federal, dirigidas por delegados de polícia, compete exercer com autonomia suas atribuições investigativas e auxiliar o Judiciário e o sistema de justiça criminal no que forem legalmente solicitadas. A não intervenção ou não interferência dos poderes nas tarefas de investigação criminal são cruciais para o resguardo da qualidade dos procedimentos de persecução penal policial, garantindo-se a técnica, a objetividade e a isenção dos mesmos.
No curso de uma investigação, as polícias judiciárias adotam diversas providências: ouve testemunhas, levanta e verifica provas, realiza campana, faz requisições às autoridades judiciárias (escutas, interceptações, quebras de sigilo, medidas protetivas, prisões temporárias e preventivas), além de solicitar medidas técnicas e periciais (exames diversos) para elucidara prática do delito investigado.
Nesse sentido, a qualidade da investigação policial faz toda a diferença para consolidar um regime de orientação democrática. Ela deve ser lícita, isenta, técnica e consistente, ou seja, conduzir-se dentro da lei, resguardar os direitos fundamentais, conduzir-se de acordo com o devido processo legal, seja no âmbito judicial seja no administrativo, sem permitir interferência de nenhuma autoridade nem de ninguém seja quem for. É essencial prevenir abusos e erros, sejam policiais sejam judiciários, e evitar que se condene o inocente ou se deixe impune o autor do delito.
Por isso, a autonomia e a isenção nas investigações policiais são extremamente necessárias para se combater de modo efetivo a impunidade, os abusos ou desvios de poder, e proteger a própria perspectiva de democracia daqueles que a sabotam ou a desqualificam.
A partir disso, ao mesmo tempo em que não é seguro deixar a atividade policial sem o devido controle social e institucional, questiona-se acerca da efetividade da autonomia das polícias judiciárias quando estas mesmas permanecem subordinadas a um único poder, o Executivo, o qual consta como sendo um dos principais violadores de leis e direitos no país.
As polícias judiciárias, nos Estados e na União, não estariam de certo modo de “mãos atadas” quando subordinadas e limitadas pelo poder Executivo? Já não seria tempo de assegurar-lhes maior autonomia, inclusive orçamentária, para que cumpram de modo mais efetivo suas atribuições constitucionais e em defesa da ordem democrática?
Sem dúvida, a ampliação da autonomia da polícia judiciária daria condições muito mais efetivas à qualidade da investigação criminal e à solução de inúmeros casos de polícia, sobretudo daqueles praticados por integrantes do próprio ente estatal, combatendo assim a corrupção e a impunidade. Além disso, poderia se evitar o uso político das polícias judiciárias nos estados e na União.
Por essas razões, há um aspecto imprescindível na ampliação da autonomia das polícias judiciárias: investigar e controlar efetivamente os maiores violadores das leis nos estados membros – os poderes executivos e legislativos. Essa maior autonomia, contudo, não pode ser do mesmo modo sinônimo conivência com abusos de poder, excessos e outras ilicitudes do gênero.
Desse modo, considerando a arquitetura do Estado brasileiro e as peculiaridades das disputas pelo comando do executivo e pelos mandatos legislativos, talvez o melhor fosse permitir a ampliação autonomia das polícias judiciárias do país, sobretudo em relação ao poder Executivo, mantendo seu controle externo pelo ministério público e pelo judiciário, além de órgãos autônomos de controle interno, como as corregedorias independentes, inclusive com quadro de carreira própria.
Esse sistema teria mais méritos técnicos e operaria de modo muito melhor em benefício do regime democrático e dos apelos da sociedade brasileira. Tenderia a dar respostas mais efetivas ao sistema de poderes e às demandas sociedade, que precisa de uma polícia técnica, fiscalizada, disciplinada, eficaz, e com autonomia pra investigar os poderes e instituições quando são acusados de corrupção, de abusos de poder e variados desvios.
Por fim, polícias judiciárias assim autônomas serviriam melhor à forma republicana de governo, podendo mais eficazmente contribuir para frear abusos dos poderes, evitar saques de recursos públicos e favorecer de modo mais substantivo às perspectivas de democracia e a defesa da dignidade humana.
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