Esta frase é parte do título da matéria do ‘El País’, respeitado jornal da Espanha em sua versão brasileira, publicado nesta semana. A matéria “Trafiquei mulheres por mais de 20 anos, comprava e vendia como se fossem gado”, de 12 de novembro, assinada em Madrid, pelo jornalista Manuel Jabois, revela os meandros do comércio de para fins de exploração sexual comercial na Espanha.
A matéria se baseia na obra da jornalista e diretora Mabel Lozano, uma espanhola ativista contra o tráfico de mulheres que acaba de publicar o documentário ‘O Proxeneta’ no qual faz mais uma importante denúncia à sociedade sobre a ilícita economia do sexo.
No documentário ‘O Proxeneta’ Lozano entrevista um informante da Unidade contra Redes de Imigração Ilegal e Falsidade Ideológica (UCRIF), na Espanha. O informante durante mais de duas décadas se enriqueceu com o que chama de “negócio do sexo na Espanha”. Se especializou no contrabando e tráfico de mulheres de diversos países, inclusive do Brasil, para atuarem na prostituição nas casas especializadas na Espanha que figura como o principal país na chamada economia internacional do sexo.
Há muito o sexo é um negócio agenciado e explorado por especialistas em diversos ao redor do mundo. É inegável, porém, que a Espanha é “um país no qual, segundo dados do Governo, são movimentados em torno desse negócio cerca de cinco milhões de euros por dia, e onde foram identificadas, em 2016, 14.000 vítimas de tráfico: um terço das mulheres captadas em seus países de origem pelas organizações criminais, muitas delas brasileiras” afirma Jabois.
Em outro trecho da matéria, o informante revela a Jabois como funciona o “negócio do sexo” e o tráfico internacional de mulheres: “A primeira regra que se aprende é não olhá-las como suas, mas como a matéria prima do seu negócio. É importante não se envolver em sua vida além do necessário (…) Simplesmente é uma propriedade, como a Coca-Cola que você vende, e têm que ser tratadas como tal. Se envolver em suas vidas ou em seus problemas pode te afetar, porque essa mercadoria tem sentimentos (…) Criamos uma forma de vida que se sustenta graças à escravidão, sem sequer saber pensar (…) O tráfico de mulheres deu espaço para os macrobordéis para os clientes, que não eram outra coisa que prisões de luxo repletas de miséria para as mulheres escravas de um sistema novo e cruel. Transformamos as mulheres em grandes máquinas de fazer dinheiro”, afirma o traficante.
Essas afirmações são no mínimo assustadoras pela frieza com que o traficante se refere às mulheres como mercadoria, ou como um gado qualquer. A diferença, entretanto, entre o comércio de um gado e de uma mulher para exploração sexual é que no primeiro caso, o comerciante obtém um único lucro imediato por cabeça de gado. Já no caso das mulheres, o lucro pode ser multiplicado diversas vezes e “elas se transformavam em um cheque em branco. O benefício de sua exploração podia superar os 200 mil euros. Seriam necessários 10 quilos de cocaína para alcançar o mesmo valor que gerava uma só vítima”, revela o informante a Mabel Lozano. Isso faz com que a exploração sexual comercial esteja entre as maiores e mais lucrativas economias ilícitas da atualidade.
Entre 2010 e 2011 estive na Espanha para realizar parte do meu doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia, pela Universidade Federal do Amazonas. Nesta oportunidade, realizei um mestrado em Gênero, Identidade e Cidadania, na Universidade de Huelva, capital da Andaluzia, localizada na fronteira com Portugal. Na minha dissertação de mestrado intitulada os paradoxos do tráfico e o comércio de mulheres da Amazônia brasileira na Espanha, título original ‘Las paradojas del tráfico y la trata de mujeres de la Amazonia brasileña en España’, ouvi muitas mulheres e denunciei muitos sofrimentos vividos por elas. Uma parte dessas histórias foi publicada no livro escrito em parceria com Iraildes Caldas Torres intitulado ‘Tráfico de Mulheres na Amazônia’, pela Editora Mulheres, em 2012.
Nas pesquisas de campo, conheci uma moça de Manaus. Dei-lhe o apelido de Taty, escolhido por ela mesma, como forma de preservar sua identidade. Me recordo de ter chorado copiosamente, após cada uma das longas conversas que tive com Taty. À época ela tinha 26 anos. A descrevi como uma linda mulher morta por dentro. Sim. Taty estava morta por dentro. Foi sendo assassinada aos poucos. Primeiro quando um jovem colombiano, Carlos, a conquistou na portaria de um hotel onde ela trabalhava no centro de Manaus, e lhe prometeu o mundo. A fez deixar o trabalho e viajar com ele para Tabatinga e em seguida para Letícia, a capital do Estado Amazonas da Colômbia.
Taty acreditava ter encontrado “o príncipe encantado dos seus sonhos”. Mas, uma semana depois ela se juntou a outras quinze moças com perfil muito parecido ao seu. Todas aliciadas pelo mesmo jovem Carlos em cidades do Amazonas. Ela descobriu que Carlos era um especialista em tráfico de mulheres com larga atuação na Amazônia. Taty começou a morrer naquele dia em que lhe deram documentos colombianos e avisaram que embarcariam no dia seguinte para Madrid. Nesse dia ela compreendeu que Carlos era apenas um aliciador, mas, já era tarde demais para voltar. Ela não conseguia reagir. Apenas chorava e foi deixando as coisas acontecerem.
Ela contou que o primeiro programa sexual ocorreu na noite do mesmo dia que chegou em Madrid. Foi violentamente estuprada por um italiano. Para suportar a dor e decepção, Taty começou a beber com os clientes nos clubes noturnos. Logo a levaram para Sevilla, onde a conheci um tempo depois. Quando a entrevistei já morava na Espanha há 4 anos e nunca mais havia falado com ninguém da sua família em Manaus. A saudade a fazia delirar. Ela “sentia o cheiro do jaraqui frito com farinha”, me dizia em lágrimas.
Nas conversas que tive com ela, diversas vezes insisti que voltasse para Manaus. Mas, ela respondia sempre a mesma coisa: “me sinto morta por dentro, é melhor que nunca me vejam assim”. Referindo-se à sua família. Taty se sentia como um objeto, uma coisa que se transfere de um lugar para outro. Já não se importava com nada. Sofria todo tipo de violência e humilhação tanto dos clientes quanto dos proxenetas. A inseriram num sistema de rotatividade no qual as mulheres circulavam entre os clubes, casas noturnas e bordéis naquela fronteira da Europa, especialmente entre Portugal, Itália e Espanha, na chamada indústria internacional do sexo com sua dinâmica própria.
Ao finalizar os estudos de mestrado, procurei a Taty e, como já esperava, ela já não se encontrava mais em Sevilha. Tempos depois ela fez contato. Estava em Milão, na Itália e continuava morrendo aos poucos, no mesmo sofrimento de outrora. No início deste ano de 2017, retornei à Espanha para participar de uma atividade acadêmica na Universidade de Huelva e soube da morte da Taty. As amigas contam que “a encontraram morta num quarto de cliente em Sevilla, numa manhã qualquer do início de fevereiro”.
Diante do fato me senti impotente. Eu vi e ouvi seu sofrimento e não pude fazer nada para impedir. Pior ainda é saber que milhares de jovens mulheres estão nesta mesma situação, mortas por dentro, aguardando apenas a hora de completar a morte do corpo que vai chegando aos poucos, mas, não antes de encher os bolsos dos seus traficantes e proxenetas que continuam agindo livremente ao redor do mundo fazendo movimentar a implacável indústria internacional do sexo movida pelo tráfico, escravidão e exploração sem fim.
Por isso, nesse breve artigo nos unimos a pessoas como a jornalista e escritora Mabel Lozando, ao repórter investigativo Manuel Jabois do El País e a tantas outras pessoas que não cessam na luta contra o tráfico internacional de mulheres para fins de exploração sexual comercial. Que a morte de Taty e de milhares de mulheres escravizadas no comércio sexual não seja em vão! Porque são pessoas, seres humanos! Não são gado, nem uma marca qualquer.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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