Reafirmamos a necessidade urgente de trazer à comunidade vivências em educação popular, em vigilância popular ambiental para além do modelo institucionalizado
MANAUS – Eles e elas são milhares… Perambulam pelas ruas famintos (as), doentes, na perspectiva de um abrigo, de restos de comida, de carniças… É grande a competição com os urubus. As ruas de Parintins/AM testemunham o veredito.
Dada a realidade em pauta, numa dessas tardes, saímos à procura de razões, de materialidades que justificassem ou contestassem prováveis equívocos, de nossa parte, sobre problematizações pouco simpáticas em relação às perversidades produzidas pelo sistema administrativo aos seres considerados inferiores: em verdade, os legítimos e naturais habitantes da Mãe Terra.
Percorremos o centro urbano, naturalizado como cidade, na tentativa de captar um sentido justo e funcional sobre as estruturas de concreto espalhadas: em maioria abandonadas, frias, fétidas e excludentes. Circulamos as periferias entre lama, lixo e esgotos escancarados – territórios onde moradores se iludem sobre o direito à moradia. Visitamos ainda paragens mais afastadas: por sua vez, os respectivos ocupantes se impõem ou se refugiam como podem, submetendo-se e produzindo os próprios códigos, na tentativa de, pelo menos subviverem.
Ainda, como quem procura por um tesouro valioso buscávamos jardins, embora esquecidos, entre o concreto… Vislumbrávamos praças com flores, música popular e crianças construindo pernas-de-pau, curicas de papel, carrinhos de rolimã, jogando bolinhas de gude, bole-bole e folguedos próprios dos sonhos infantis… Debalde!
Na contramão de nossas utopias, encontramos crianças treinando violência em jogos eletrônicos; outras xingavam com palavrões as operadoras de celulares por ausência de sinal; meninas discutiam entre si as últimas tendências da moda erótico-infantil e, o mais dramático, dois adolescentes, talvez entre 12 e 13 anos, ensaiavam as primeiras baforadas de cigarro.
Se não bastasse, deparamo-nos com uma cadela esquelética, sarnenta, rastejando-se com muita dificuldade em direção a um resto de sanduíche abandonado fora da lixeira. Os olhos lacrimejantes daquela fêmea comunicavam dor e abandono… Aproximei-me, nossos olhares se cruzaram e captei um urgente pedido de socorro: uma morte menos dolorosa, talvez, tendo em vista o curso hemorrágico que fluía da vagina em decorrência de um tumor de sticker*. Não muito distante dali outra cadelinha agonizava sobre uma calçada em estado total de maus-tratos.
Uma total impotência nos dominou… A quem recorrer? Ninguém sabia informar sobre os possíveis proprietários daquelas vidas condenadas, frutos da insensibilidade, da ausência de políticas públicas em educação ambiental. Tampouco sabíamos a quem denunciar… A Lei 14.064/2020, que prevê pena de reclusão de 2 a 5 anos, multa e em caso de morte do animal, a pena pode ser aumentada, é totalmente negligenciada na cidade do folclore*.
Sem quaisquer perspectivas alvissareiras, a noite nos convidara retornar para casa. O céu nublado abrigava a lua minguante já se recolhendo em seu natural silêncio provocando-nos mergulhar no interior das cavernas dos poderes constituídos em busca de respostas ético humanizantes.
As duas situações ativaram ainda mais profundas reflexões sobre o verdadeiro sentido de viver, de existir, de ser, independentemente da espécie… É inegável a similitude entre todos os seres vivos em situações de dor e abandono… No entanto, a estúpida discriminação aplicada sobre os rotulados “insignificantes” pelo determinismo sistêmico (populações afro-indígenas, bichos, florestas, terras, águas…) tornara-se regra.
As cenas de crueldade testemunhadas naquela tarde resultaram em insônia, inquietação e inflamara ainda mais indignação às indiferenças, às omissões impregnadas nos sistemas administrativos representativos (?). Reafirmamos a necessidade urgente de trazer à comunidade vivências em educação popular, em vigilância popular ambiental para além do modelo institucionalizado. O pedido de socorro captado do olhar daquelas cadelinhas denuncia a omissão de um sistema que exclui, na prática, prevenção e promoção da vida com dignidade, garantido mediante políticas sociais e econômicas.
E assim, enquanto houver vira-latas funcionais se rendendo a tutores e se contaminando por migalhas e babugens, certamente nossas problematizações continuarão antipáticas…
Falares de Casa
Tumor de sticker – câncer do aparelho genital canino feminino.
Cidade do Folclore – Ilha Tupinambarana, espaço urbano do Município de Parintins AM.
Fátima Guedesé educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Uma das fundadoras da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS). Autora das obras literárias, Ensaios de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.
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Sensibilidade em flor nos pêlos” desses animais representada e ativada nesse texto doloroso e verdadeiro, sem a utopia de trazer em pauta as outras vidas que também importam, mas trazendo em luz a verdade dura do sentimento que Vida importa , um andar pela cidade que amo e me conecto de várias formas traz nesse texto parte de minhas observações de anos , que em triste constatação percebo que ainda falta não uma “política atuante “ mas um despertar de forças internas dos indivíduos que desconhecem o seu potencial de agir em prol do crescimento e evolução . Falta muito , mas o caminho ainda é percorrido … Gratidao