Por Fernanda Perrin, da Folhapress
WASHINGTON – Mais de 20 anos após o 11 de Setembro de 2001, cinco homens presos em Guantánamo ainda aguardam julgamento por seu suposto envolvimento nos ataques terroristas.
Todos eles confessaram o crime em 2007 – depois de anos sob tortura. Por isso, a defesa argumenta que as declarações são inadmissíveis como prova. A acusação teme que elas sejam descartadas, enfraquecendo as chances dos réus serem condenados à morte.
O impasse poderia ser resolvido por um acordo entre as partes, em que os acusados reconheceriam a culpa em troca de prisão perpétua, em vez da pena capital. A solução vem ganhando força nos últimos meses, e reuniões entre a Procuradoria e familiares das vítimas e sobreviventes para discutir a proposta foram realizadas.
Alguns apoiam a ideia para encerrar o caso, outros exigem um julgamento que dê transparência ao que ocorreu – sobretudo ao papel do governo saudita – e leve à execução dos culpados.
Do lado da Casa Branca, um acordo também é politicamente espinhoso: que presidente quer ser lembrado como aquele que negociou com os arquitetos do ataque às Torres Gêmeas?
Na última quarta-feira (6), o governo de Joe Biden já rejeitou, por exemplo, uma lista de condições propostas pela defesa para aceitar um acordo, entre elas tratamento para distúrbios do sono, lesões cerebrais e danos gastrointestinais, que os réus afirmam ser consequência do período em que foram torturados. A informação foi obtida pelo jornal The New York Times.
Há ainda outro complicador: em agosto, uma junta médica militar avaliou que um dos acusados, em decorrência de uma doença mental, é incapaz de ir a julgamento ou fazer um acordo, segundo o jornal americano.
Ele teria recebido o diagnóstico de transtorno de estresse pós-traumático. Cabe agora ao juiz decidir se ele será separado dos demais ou se a Justiça vai aguardar o tratamento do réu.
O principal acusado é o paquistanês Khalid Shaikh Mohammed, 58, apelidado de KSM. Capturado em 2003, é apontado como o idealizador do ataque – ele teria proposto o sequestro de aviões ao então líder da Al Qaeda, Osama bin Laden, e supervisionado todo o planejamento da operação.
Os outros quatro réus são os sauditas Walid bin Attash, 45, e Mustafa al Hawsawi, 55, o iemenita Ramzi bin al-Shibh, 51, avaliado como incapaz pela junta médica, e o paquistanês Ammar al-Baluchi, 46.
Eles são acusados de terrorismo, conspiração e assassinato de civis, entre outros crimes. Segundo o indiciamento, todos eles ajudaram de alguma forma os 19 sequestradores nos dois aviões lançados contra o World Trade Center, no que se chocou com o Pentágono e no que caiu em um campo na Pensilvânia após um embate com os passageiros, causando a morte de 2.976 pessoas.
Os cinco homens foram capturados pelos Estados Unidos em 2002 e 2003 e levados para prisões secretas da CIA, a agência de inteligência americana, onde foram submetidos às chamadas “técnicas avançadas de interrogatório”, como waterboarding (simulação de afogamento), walling (bater a cabeça de uma pessoa contra a parede), privação de sono, nudez forçada e “alimentação retal”, uma forma de violação sexual.
Em 2006, eles foram transferidos para Guantánamo, em Cuba. Em razão das torturas sofridas nos anos anteriores, foram enviados agentes do Departamento de Justiça e do FBI, conhecidos como “equipe da limpeza”, para obter confissões voluntárias dos cinco homens.
A defesa, no entanto, diz que mesmo essas declarações não são admissíveis como prova porque os réus foram condicionados a admitir culpa após anos de violência.
Esse argumento ganhou força no mês passado, após um juiz decidir que a declaração de culpa nas mesmas condições obtida de um réu acusado por outro atentado não é válida. “Qualquer resistência que o acusado poderia ter tido quando solicitado a incriminar a si mesmo foi intencionalmente e literalmente espancada para fora dele anos antes”, diz o juiz na sentença.
Já Terry Strada, diretora da organização Famílias Unidas do 11 de Setembro, que representa cerca de 10 mil pessoas entre familiares de vítimas e sobreviventes, argumenta que há muitas evidências além das confissões que podem ser usadas pelos procuradores.
Strada perdeu o marido, Tom, na época com 41 anos. Ele estava no 104º andar da torre norte do World Trade Center. Ela conta que ele trabalhava no mercado financeiro e havia ido ao escritório naquele dia para receber “baby trades”.
“Em Wall Street, quando uma pessoa tem um novo bebê, ela vai à empresa para receber dos colegas essas operações de parabéns”, explica. O terceiro filho do casal havia nascido quatro dias antes dos ataques.
Ela participou de uma reunião de famílias com os procuradores na Flórida para explicar como se daria um acordo com os réus. Na ocasião, afirma, ouviu que a solução encerraria o processo mais rápido, mas também que possuem provas fortes contra os acusados.
“Eu quero que o julgamento aconteça, que as evidências venham à tona. Eu não quero que elas sejam enterradas, que sejam inadmissíveis. Quero ouvir tudo para que possamos aprender tudo sobre como e por que fomos tão brutalmente atacados em 11 de Setembro”, afirma à Folha de S.Paulo, destacando que essa é sua posição pessoal, não da organização.
Para Strada, o governo deseja um acordo para impedir que informações sobre o papel da Arábia Saudita, um importante aliado americano no Oriente Médio, sejam reveladas pelos réus. Outro objetivo seria esconder o que chama de “comportamento nefasto” da inteligência americana.
Outros familiares de vítimas assinaram uma carta enviada ao presidente Joe Biden pedindo que ele interfira para que um acordo não seja fechado com os acusados.
Mas há também quem defenda essa solução. Uma das representantes mais vocais desse grupo é a documentarista Terry Rockefeller, integrante do grupo Peaceful Tomorrows (amanhãs pacíficos), que pede uma resposta não violenta aos atentados.
Rockefeller perdeu a irmã, Laura, que também estava na torre norte. Em um artigo publicado no final de agosto, ela diz que um julgamento poderia levar anos em decorrência de questionamentos quanto à validade das provas. Se um dos réus morrer antes de ser sentenciado, ele poderia, no limite, ser considerado inocente ao final de tudo, alerta.
Um acordo, por sua vez, obrigaria os réus a admitirem todos os crimes que cometeram ou dos quais têm ciência, a abrirem mão de recorrer da sentença, e poderia incluir a possibilidade de familiares das vítimas fazerem perguntas, afirma Rockefeller.
Ela diz ainda que também quer mais informações sobre o envolvimento saudita nos atentados, “mas toda a minha experiência com o caso do 11 de Setembro em Guantánamo me diz que essa é uma informação que nunca vamos ouvir em um julgamento por uma comissão militar”.
“O 22º aniversário das mortes dos nossos entes queridos é a ocasião ideal para encerrar a falida comissão militar do 11 de Setembro, responder às nossas perguntas e nos garantir uma conclusão judicial”, diz.
As comissões militares de Guantánamo possuem regras próprias e foram criadas pelo governo Bush em 2001 para julgar estrangeiros no contexto da Guerra ao Terror. Muitos dos documentos legais -já são quase 12 mil no caso do 11 de Setembro- são confidenciais ou parcialmente censurados.
Para organizações de direitos humanos como a Human Rights Watch, as comissões carecem de autonomia e imparcialidade, o que pode tornar a sentença ilegítima na percepção nacional e internacional. A própria Suprema Corte chegou a julgá-las inconstitucionais em 2006.
Em resposta, algumas mudanças foram feitas, com uma grande reforma em 2009, durante o governo de Barack Obama. Houve uma tentativa de transferir o julgamento para a Justiça Federal, abandonada diante da repercussão negativ e eventualmente proibida pelo Congresso.
O julgamento dos cinco homens foi reiniciado oficialmente em 2012, mas, mesmo após as mudanças, ainda há muitas críticas ao seu funcionamento.
“Em 2013, uma audiência no caso do 11 de Setembro foi interrompida quando uma luz vermelha de censura piscou inesperadamente e o áudio para a galeria da sala do tribunal foi abruptamente cortado, sem aviso prévio, e muito menos permissão do juiz. O corte unilateral foi posteriormente atribuído à CIA”, escrevem Letta Tayler e Elisa Epstein em artigo da série “Custos da Guerra”, da Universidade Brown.
A defesa também acusa a CIA e os procuradores de se negarem a entregar materiais solicitados, ou a fazê-lo o mais devagar possível. Por se tratar de um assunto de segurança nacional, o juiz não pode obrigá-los a revelar informações.
“As comissões militares de Guantánamo são literalmente desenhadas para maximizar os benefícios do programa de tortura enquanto escondem o máximo possível de informações constrangedoras sobre tortura”, escreveu a advogada Alka Pradhan, que integra o time de defesa de Ammar al-Baluchi, sobre a decisão recente de descartar uma confissão obtida pela “equipe de limpeza”.
“Nós ainda estamos nessa luta no caso do 11 de Setembro, mas a decisão de hoje desestabiliza fundamentalmente todo o sistema de comissões militares”, completou.