Por Ana Estela de Sousa Pinto, da Folhapress
CANNES, FRANÇA – Penetra numa festa de casamento, Julie (personagem que deu a Renate Reinsve o prêmio de melhor atriz em Cannes neste ano) conhece Eivind. Decididos a não trair seus parceiros, mas irresistivelmente atraídos um pelo outro, começam um jogo de aproximação até o limite da fidelidade, nunca ultrapassado.
Contam segredos íntimos, dividem o banheiro, dançam, chegam a milímetros de distância e, numa das cenas mais marcantes de “A Pior Pessoa do Mundo”, fumam o mesmo cigarro, soprando a fumaça lentamente de uma boca a outra.
Banido da publicidade e, em muitos países, de locais fechados, bares, restaurantes, o tabaco continua firme como ferramenta na construção de cenas cinematográficas.
Em 20 dos 24 filmes que concorreram à Palma de Ouro deste ano, personagens principais acendem cigarros, com frequência em passagens cruciais.
O isqueiro só tira folga em “Benedetta”, filme sobre uma freira lésbica do século 17 contado pelo holandês Paul Verhoeven, “Memoria”, viagem fantástica do tailandês Apichatpong “Joe” Weerasethakul, nos entrelaçamentos familiares de “Tre Piani”, do italiano Nanni Moretti, e no drama “Tout S’Est Bien Passé”, do francês François Ozon.
A disseminação das cenas tabagistas não aconteceu por acaso, mostra um relatório do departamento de cardiologia da Universidade da Califórnia em São Francisco, que analisou mais de 1.500 documentos previamente secretos da indústria do tabaco.
Além de arma para recrutar e reter fumantes, os fabricantes viam as cenas cinematográficas como forma de manter sua aceitabilidade social e fortalecer sua posição política.
“Fumar está sendo considerado fora de moda e prejudicial à saúde. Devemos usar todos os meios para reverter essa tendência”, dizia um discurso de 1983 da presidência da Philip Morris International, que integra o relatório da universidade americana.
Preocupado com o aumento de impostos e restrições à publicidade, o executivo afirmava: “Sinto-me encorajado com o crescente número de ocasiões em que vou ao cinema e vejo um maço de cigarros nas mãos da atriz principal”.
Ele ficaria feliz logo de cara em algumas das exibições de Cannes. Fumaça logo na primeira cena foi a escolha de abertura de três diretores: o franco-marroquino Nabil Ayouch, em “Haut et Fort”, a húngara Ildikó Enyedi, em “The Story of My Wife”, e o francês Bruno Dumont, em “France”.
Já o australiano Justin Kurzel acende o cigarro da mãe de Riley no momento final, enquanto ela assiste na TV a reportagem sobre uma enorme tragédia que a envolve.
Se os personagens principais de cinema formassem um país à parte, ele estaria no topo do ranking global em número de fumantes, posição ocupada pelo Kiribati, em que 47% dos maiores de 15 anos são tabagistas.
Em média 22% da população mundial com mais de 15 anos fuma, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), enquanto 90,7% de 150 filmes franceses lançados entre 2015 e 2019 tinham ao menos uma referência ao tabaco, de acordo com balanço publicado em maio pela Liga Francesa Contra o Câncer.
A ficção também vai na contramão da vida real, em que o tabagismo recua sob combate de restrições legais e preocupações com a saúde.
No cinema, o efeito de pesquisas científicas sobre malefícios do fumo foi inverso: os fabricantes montaram uma operação agressiva para fincar bandeira no audiovisual nos anos 1980.
Empresas de merchandising foram contratadas para pagar cineastas pela inclusão do cigarro em situações positivas, e para evitar que ele fosse retratado nas negativas.
James Bond não escapou. “Por uma contraprestação financeira de US$ 10.000, os produtores concordaram que Sean Connery e outros atores importantes iriam fumar cigarros Winston e Camel”, dizia um documento de 1982 sobre acordo entre a fabricante das marcas e os responsáveis por “007 – Nunca Mais Outra Vez”.
Mais de US$ 1 bilhão foi gasto nessas campanhas, segundo estimativas, até que processos milionários contra os produtores de cigarros e audiências do Congresso americano reduziram a lucratividade desse lobby. A indústria alterou seu código voluntário de publicidade e promoção de cigarros, proibindo a prática em 1990.
Mas o tabaco nas telas de cinemas sobreviveu a esse golpe. Em média, as cenas envolvendo fumantes somam 2,6 minutos por filme, o equivalente a cinco anúncios publicitários de 30 segundos, de acordo com a liga anticâncer francesa.
Entre os longas da seleção oficial de Cannes, esse fenômeno aparece em diferentes graus. Alguns adotam o fumo como recurso casual, para justificar momentos em que personagens se encontram ou preencher cenas em que eles caminham.
Isso acontece, por exemplo, no francês “La Fracture”, de Catherine Corsini, no russo “Petrov’s Flu”, de Kirill Serebrennikov, e no finlandês “Compartment Nº 6”, dirigido por Juho Kuosmanen.
Em outros, o cigarro não tem relação alguma com a cena; está lá para compor personagens. O exagero foi tanto no musical “Annette”, do francês Leos Carax, que aparece em três cenas do personagem de Adam Driver no trailler de 1 minuto e 40 segundos, e o próprio ator resolveu acender um dentro da sala de projeção, na abertura do Festival de Cannes.
Em “Titane”, que deu a Palma de Ouro a Julie Ducournau, fumar ou não fumar não é uma questão. Seu bombeiro sessentão e amoroso Vincent é tabagista, mas poderia não ser.
O mesmo ocorre em “Les Intranquiles”, do belga Joachim Lafosse, “Flag Day”, do americano Sean Penn, no francês “Les Olympiades”, de Jacques Audiard ou no israelense “Ahed´s Knee”, de Nadav Lapid.
Faz mais sentido no iraniano “A Hero”, de Asghar Farhadi, porque o herói é repreendido por seu vício pela irmã, mantendo a coerência numa história em que ninguém é totalmente bom ou totalmente mau.
Mas há tomadas em que o fumo é indispensável na história, assim como no “sexo respiratório” dos noruegueses Julie e Eivind.
No roteiro premiado de “Drive My Car”, do japonês Hamaguchi Ryusuke, ele marca o momento em que o diretor de teatro Kafuku eleva a novo patamar sua relação com a motorista Misaki.
Em “Lingui”, do chadiano Mahamat-Saleh Haroum, é fumando que Amina, oprimida por ser mãe solteira, declara que está farta do julgamento alheio. “Chega de me esconder”, exclama antes de se entregar a uma dança da libertação.
Um cinzeiro de cristal, logo lotado de bitucas, é peça relevante do pacto entre o ex-ator pornô Mickey e sua sogra Lil, em “Red Rocket”, do americano Sean Baker.
Num degrau abaixo, já que o filme é uma coleção de episódios curtos, é com cigarros que o psicopata presidiário Moses Rosenthaler e o galerista Julien Cadazio selam um negócio em “A Crônica Francesa”, do americano Wes Anderson.
Um relatório do CDC, Centro de Controle de Doenças dos EUA, mostra que esse panorama não é exclusividade das obras selecionadas pelo Festival de Cannes.
O órgão aponta aumento nos episódios tabagistas no cinema entre 2010 e 2019 e “níveis persistentes de cenas envolvendo cigarros”, que, de acordo com o documento, incentiva adolescentes a fumar.