Este foi o título do último artigo escrito por Cláudio Perani, sacerdote jesuíta que dedicou os últimos anos da sua vida aos povos da Amazônia. Falecido em Manaus em 8 de agosto de 2008, o missionário italiano, que veio para o Brasil com 21 anos, escolheu o chão da Amazônia para ser sepultado, deixando como herança uma contribuição imensurável para a educação popular e a formação social das classes populares. Por isso, a Companhia de Jesus na Amazônia e diversos seguimentos populares estarão realizando um seminário, a partir desta quarta até sábado, com uma agenda de atividades variadas para celebrar os dez anos de seu falecimento e retomar suas reflexões e contribuições para a educação popular.
Como forma de reconhecimento de seu legado teórico e agradecimento por sua atuação na formação social e política da Amazônia, socializo neste artigo alguns fragmentos de seu último texto, escrito para a aula inaugural da quarta turma do Curso de Formação para Ação Social – FAS – do Serviço de Ação, Reflexão e Educação Social – SARES, realizada em Manaus, no dia 19 de fevereiro de 2008. Assim dizia Claudio Perani:
Este breve texto é um convite à reflexão. De maneira especial sobre as diversas lutas e clamores dos povos da Amazônia. Iniciamos a reflexão com algumas frases da poesia “quando a verdade for flama”, da coletânea “Faz escuro, mas eu canto”, do poeta amazonense Thiago de Mello que diz o seguinte: “As colunas da injustiça, sei que só vão desabar quando o meu povo, sabendo que existe, souber achar dentro da vida o caminho que leva à libertação. Vai tardar, mas saberá que esse caminho começa na dor que acende uma estrela no centro da servidão. De quem já sabe, o dever (luz repartida) é dizer. Quando a verdade for flama nos olhos da multidão, o que em nós hoje é palavra no povo vai ser ação”.
Retomando a poesia por partes, propomos algumas reflexões pontuais que podem ajudar no aprofundamento dos desafios dessa nossa realidade tão sofrida e, ao mesmo tempo, carregada de lições de libertação.
- “As colunas da injustiça – sei que só vão desabar quando o meu povo, sabendo que existe, souber achar dentro da vida o caminho – que leva à libertação. Vai tardar, mas saberá – que esse caminho começa na dor que acende uma estrela – no centro da servidão”. As “colunas da injustiça” representam a triste situação da Amazônia desde a invasão dos portugueses. Terra injustiçada por não ser reconhecida em sua identidade e valor. Explorada em favor de interesses alheios.
- “Meu povo”: a Amazônia é uma terra habitada por um povo querido, que vive e sobrevive.
- “Achar dentro da vida o caminho que leva à libertação”: é esse povo, injustiçado, que no cotidiano de sua vida e de sua luta encontra o caminho da libertação colocado a serviço de um projeto local.
- “Na dor que acende uma estrela no centro da servidão”: exatamente porque injustiçado o povo amazônida torna-se semente de libertação.
As palavras do poeta são muito atuais. Representam bem a caminhada do povo nessa imensa Amazônia. São palavras que nos calam e nos convidam a uma profunda conversão. Conversão aqui, significa reconhecer o valor do povo. Um povo de muitos rostos e de muitos clamores. A conversão nos conduz a respeitar sua caminhada, seu tempo histórico e seu protagonismo que desperta a sociedade brasileira e os povos do mundo para conhecerem os valores e a criatividade dos povos da Amazônia, frente às agressões do atual modelo econômico e cultural, favorecendo a conversão à solidariedade, a um novo estilo de vida e de desenvolvimento humano.
Na conjuntura mundial atual, é algo de providencial, é um grito profético de alerta para o mundo inteiro, para o Brasil e para o próprio povo da Amazônia. A partir desta terra vem a denúncia, lúcida e violenta, deste modelo econômico neoliberal. Não somente, pois, também aparecem os caminhos, ainda tímidos, para uma nova sociedade mais solidária, para um novo modelo de cidadania, aqui integrado pela visão de florestania e pelo sonho da Terra sem Males, sonhado pela maioria dos povos indígenas e ribeirinhos da Amazônia. Para eles, a Amazônia é uma casa acolhedora de todos os povos das cidades e das florestas.
Não se trata, então, de ajudar a Amazônia para ela respeitar mais a floresta. Trata-se de perceber a necessidade de uma profunda conversão da humanidade inteira e dos cristãos, em particular, questionados e iluminados pelo povo da Amazônia. Trata-se de uma tomada de consciência universal das grandes injustiças contra as populações da terra, não somente no sentido econômico, roubando a riqueza aqui existente, mas sobretudo pela visão falsa, pueril e discriminatória que existe em relação à Amazônia e seu povo, no Brasil e no mundo inteiro. Mesmo entre intelectuais e lideranças eclesiais no quais ainda permanece a visão muitas vezes internalizada na população local, de que a Amazônia precisa do resto mundo. Será que não seria exatamente o contrário? Imaginem quanta coisa bonita as outras regiões poderiam aprender com os povos da Amazônia!
Na Amazônia existe um povo. Desde o início da colonização os portugueses apareceram como uma civilização superior. Ignoraram totalmente a história milenar dos povos indígenas. Os estudiosos dizem que existiam na Amazônia brasileira de 5 a 20 milhões de indígenas. Não só, mas, consideravam os habitantes locais primitivos, selvagens, chegando a colocar em dúvida a existência da alma. Não deixavam, porém, de utilizar os indígenas para o trabalho escravo em suas fazendas de cacau e de gado. Coisas do passado?
A exploração econômica e política continua hoje, evidentemente, com novas formas e sutilezas consideradas por nós mais “civilizadas” materializadas no desmatamento para o agronegócio, a mineração, a biopirataria. Hoje estão roubando até a água! Os projetos energéticos e viários das grandes rodovias e hidrovias para favorecer interesses externos. E podemos acrescentar o trabalho escravo, o narcotráfico, a militarização, a violência sempre maior, as cidades inumanas. Só para lembrar um dado da perversão do modelo capitalista aqui implantado: a produção pecuária gera somente um emprego utilizando 30 km², enquanto a agricultura familiar pode sustentar 100 pessoas em 2,5 km².
O que mais nos interessa nessas breves linhas é considerar a visão folclórica e ideológica que ainda hoje permanece sobre a Amazônia veiculada na televisão em muitas partes do mundo. Não querem saber que aqui existe um povo! Sim. Aqui existe um povo! A Amazônia não é somente um ambiente físico, mas também um ambiente humano, com uma história social, política e econômica, com uma cultura própria, ou melhor, com várias culturas bem diversificadas entre si. Um povo que sabe lutar e arrancar de dentro de si as respostas para os problemas que lhes são apresentados. Um povo protagonista de sua história e da luta por uma sociedade mais justa, fraterna e solidária, baseada nos princípios da ecologia integral.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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