Ao modo de boa parte dos municípios brasileiros, a cidade de Manaus adota o critério da inserção no Programa Bolsa Família (135.753 famílias) para a concessão da tarifa social. O público elegível para receber a tarifa social se limita às famílias contempladas por este programa, ficando de fora aqueles que não são alcançados por nenhum programa social, como a população de rua, que totaliza mais ou menos duas mil pessoas, em Manaus (Ipea, 2015). Caso a inserção no Cadastro Único fosse o critério para receber a tarifa social, o contingente de beneficiados seria ampliado para 264.499 famílias, mas a racionalidade empresarial (ânsia pelo lucro) não permite tal mudança, nem existe vontade política que preconize tal ampliação, por parte dos poderes públicos.
Há uma forte morosidade na implantação da tarifa social na capital amazonense, uma vez que o benefício foi projetado em Janeiro de 2007 (Primeiro Termo Aditivo ao Contrato de Concessão), mas instituído somente em abril de 2014 (Decreto 2.748). Tal medida foi firmada em meio a intensas críticas aos sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário, num momento em que o grupo Lyonnaise des eaux (Suez) transferia a concessão dos serviços para o grupo Solvi. Este, por sua vez, se retirou da gestão dos serviços em 2012, sem implantar a tarifa social, portanto, descumprindo o acordo firmado.
A tarifa social foi implantada por força de decreto municipal em 2014, quando a gestão dos serviços já era realizada pelo grupo Águas do Brasil. No entanto, um ano após a sua criação, o beneficio ainda não tinha sido efetivado, sendo necessária a intervenção da Câmara Municipal dos Vereadores, que obrigou a concessionária divulgar o benéfico nos seus próprios canais de comunicação (Lei nº 2.001/2015).
Atualmente, a implantação da tarifa social alcança somente 38% das unidades familiares contempladas pelo Programa Bolsa Família. Tal morosidade constitui violação de um direito humano, com especial gravidade por se tratar do acesso a um bem essencial à saúde e à vida. O contexto de pandemia tem agravado esta situação uma vez que o combate ao novo coronavírus não pode ter sucesso sem as condições mínimas de higiene, que inclui o acesso à água.
As crises sanitária e econômica vividas atualmente no Brasil reforçam a necessidade da implantação da tarifa social e a ampliação do grupo dos elegíveis diante do colapso do emprego e da renda (IBGE 2020). Esta situação tem provocado a redução do poder de compra de milhares de famílias, tornando imprescindível para elas serem favorecidas por aquele subsídio, para que possam aliviar as despesas domésticas e garantir um mínimo de acesso à água potável. Diante destas circunstâncias, a morosidade na implantação da tarifa social tem agredido o direito humano à água, afetando as populações mais vulneráveis da cidade.
Para que o direito à água e ao saneamento seja implantado adequadamente é necessário considerar as situações das famílias que se encontram em elevado grau de vulnerabilidade socioeconômica, concedendo a isenção do pagamento de um volume mínimo de 50 a 100 litros per capita ao dia. De fato, com quase 40% da população auferindo até meio salário mínimo, um contingente expressivo de manauenses não possui condições de pagar nem a tarifa social, sem comprometer outras necessidades essenciais. Vale lembrar que o preço cobrado pela água em Manaus situa-se entre os mais caros da Amazônia, perdendo apenas para Palmas/TO, cujos serviços são realizados pelo grupo privado BRK Ambiental.
A cultura da desigualdade que configura estruturalmente a cidade Manaus também prejudica a implantação da tarifa social na capital amazonense. Para que a tarifa seja adequadamente viabilizada é necessário que os consumidores mais ricos se empenhem em tal processo, pagando os subsídios necessários para a sustentabilidade da iniciativa. Neste sentido, convém que as empresas do Distrito industrial de Manaus aportem de forma mais incisiva na manutenção do sistema público de água e esgoto. A prática dos subsídios cruzados tem uma boa tradição na operação dos sistemas de água e esgoto no Brasil. Junto a isso, uma regulação mais rigorosa da parte dos órgãos fiscalizadores pode trazer melhores resultados.
A demora na implantação da tarifa social em favor das populações mais vulneráveis parece sugerir que o setor privado opera a partir da perspectiva de que é natural que uma parte da população não tenha acesso à água e ao saneamento. Tal perspectiva, no entanto, fere frontalmente o direito à água e ao saneamento reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU). Diante das dificuldades do setor privado em universalizar tais serviços, compete ao Estado tomar as rédeas da política de saneamento a fim de cumprir a sua obrigação constitucional de garantir aquele direito a todos os cidadãos.
Para que a tarifa social seja efetivamente implantada é necessária uma tomada de consciência do conjunto da sociedade sobre a importância do direito à água e ao saneamento como avanço civilizatório rumo a uma sociedade mais democrática e minimamente justa. Porém, enquanto a água for estratégia de lucros para a empresa Águas de Manaus, é improvável que toda a população de Manaus tenha acesso garantido a este bem essencial, pois não se cumpre corretamente nem a lei da tarifa social.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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