O sofrimento causado por crises, como epidemias e guerras, sempre despertou o sentimento de solidariedade com as vítimas. Este sentimento geralmente se transforma em ações concretas de ajuda e colaboração individuais e coletivas. Mas a solidariedade também motiva a organização de grupos de pressão a Estados e governos para que tomem as medidas necessárias para superar as crises e sanar os sofrimentos causados por elas. Dessa forma, a solidariedade ganha uma dimensão política que implica a preocupação com o conjunto da sociedade. A crise provocada pelo novo coronavírus constitui um fenômeno global que tem impulsionado a mobilização de organizações locais, nacionais e internacionais, além de lembrar que os Estados têm grandes responsabilidades pelo bem-estar das suas populações.
Muitos autores veem nos momentos de sofrimento a ocasião em que a consciência ética se desperta, fazendo a humanidade avançar na configuração de sociedades mais civilizadas, levando à promulgação de leis e o estabelecimento de penas e prêmios, que inibem a violência, asseguram a vida diante de catástrofes naturais e promovem uma sociabilidade mais tolerante e respeitosa.
A solidariedade pode, portanto, romper o paradigma do individualismo, que preconiza a postura de indiferença diante da necessidade do outro. O individualismo filosófico concebe o homem como lobo do próprio homem e a sociedade como um campo de batalha, onde as pessoas são lançadas à sua própria sorte. Neste cenário, somente os mais fortes se adaptam e sobrevivem, operando a lei da seleção natural. Os mais fracos e vulneráveis são eliminados, sendo tal eliminação considerada um acontecimento normal, previsto e até desejado por grupos de tendências fascistas.
O capitalismo neoliberal assimilou o individualismo como orientação e dogma. Lançadas no mundo do mercado desregulado, as pessoas competem pela própria sobrevivência, prevalecendo necessariamente os mais fortes. O sofrimento e a morte causados pela pobreza e pelo desamparo são considerados fenômenos normais, que colaboram para a seleção natural e para o ajuste do tamanho da população. Segundo este modelo, o Estado não pode intervir para ajudar as pessoas mais vulneráveis, pois isso significaria desequilibrar as leis naturais da evolução da espécie e infringir as leis econômicas que não toleram gastos sem a garantia de um retorno satisfatório.
A função do Estado, para os neoliberais, constitui principalmente em garantir um mercado dinâmico e capaz de gerar lucros a serem apropriados pelos mais poderosos. De acordo com esta lógica, o tombamento dos mais fracos é considerado um efeito colateral, que não merece preocupação, nem mobilização da parte do Estado. Para promover o mercado, o Estado neoliberal privatiza as empresas públicas mais rentáveis, nutre os grandes bancos e empresas com somas bilionárias, retira direitos dos trabalhadores, precariza a proteção social dos mais pobres, abandona os setores da educação, da saúde pública e do saneamento básico, favorece aos empresários em detrimento dos empregados e desestrutura as políticas sociais.
Ao contrário, a solidariedade, diante das crises sociais e sofrimentos, constitui um grande dinamizador de ações positivas que leva o ser humano a sair de si mesmo, do seu egoísmo, preocupar-se com o necessitado, lançar-se em direção ao outro para ajudar. Nesta época de crise muitas entidades e movimentos da sociedade civil se mostram preocupadas pelo estilo de vida insustentável que a sociedade tem praticado e destacam a necessidade de mudar o relacionamento entre os humanos e entre estes e a natureza. Trata-se de estabelecer relações de respeito e de proteção aos seres humanos e a natureza.
A solidariedade encontra no reconhecimento da dignidade humana o seu principal suporte. Com este fundamento, a solidariedade delineia e potencializa a emergência de sociedades justas e democráticas, que transcendem os simples sentimentos morais e engendram uma perspectiva institucional e jurídica: direitos civis, direitos políticos, direitos sociais, direitos ambientais, direitos humanos. Defender os direitos humanos constitui uma excelente forma de solidarizar-se com os mais vulneráveis e sofredores da sociedade.
A defesa dos direitos humanos torna-se urgente quando a dignidade humana está em perigo e precisa ser reconhecida como valor incalculável. Ao mobilizar a sociedade pelo cumprimento dos direitos fundamentais (direito à água e ao saneamento, direito à saúde pública, direito à educação, direito ao salário justo, direito à moradia digna e direito à terra), a solidariedade viabiliza a saída das crises humanitárias e o caminho de superação dos sofrimentos.
A solidariedade também nos coloca em sintonia com os direitos da Mãe Terra, que é continuamente agredida pelo nosso estilo de vida e pelo desenvolvimentismo desenfreado, que depreda a natureza como se o planeta não tivesse limites. Neste sentido, o cuidado para com a Amazônia é essencial, pois suas florestas, biodiversidade e povos portam dignidades próprias e impactam o ecossistema num raio continental e global.
A crise do novo coronavírus, portanto, pode despertar em nós a solidariedade ativa, sinalizando que é preciso mudar o rumo da caminhada humana, reconhecendo, defendendo os direitos humanos e os direitos da Mãe Terra. A solidariedade clama por mais democracia, mais proteção aos seres humanos contra os desastres naturais e diante das contingências da vida (idade avançada, enfermidades, desemprego), mais compromisso com os bens públicos e com a natureza. Assim, a espécie humana se tornará a expressão consciente e amorosa da Mãe Terra, mãe de todos os seres vivos.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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