Há cinco anos o Papa Francisco publicou a Carta Encíclica Lautado Si – Sobre o cuidado da casa comum (2015), visando chamar a atenção de toda a humanidade para a crise socioambiental que vivemos no planeta. Francisco quer conduzir a humanidade num processo de reflexão sobre o estilo de vida e a relação com o planeta hoje em voga. Ele está convencido de que precisamos mudar de mentalidade e de atitude, saindo do nosso egoísmo individualista e antropocêntrico, que prejudica não somente a natureza, mas também a nós mesmo.
Pautando-se pelas pesquisas científicas mais recentes, pela tradição milenar da Igreja e pela sabedoria humana, adquirida ao longo da história, o Papa mostra a urgência da mudança que precisa ser realizada enquanto ainda há tempo. Uma mudança que abrange todas as dimensões humanas: política, social, econômica, cultural e espiritual. Esta abrangência é justificada pelo fato de tudo estar interligado. É dentro desta perspectiva, que Francisco afirma que não há uma crise social e outra ambiental, mas uma única crise socioambiental.
A preocupação demonstrada em relação ao predomínio do paradigma tecnocrático evidencia uma profunda lucidez sobre as forças que condicionam e pautam o nosso pensar e o nosso agir. Se de um lado a evolução da técnica possibilita a melhoria da qualidade de vida, este avanço não é usufruído por todas as pessoas, mas é restrito a pequenos setores da sociedade, obrigando a grande maioria da população viver em condições subumanas.
O paradigma tecnocrático, que estimula o domínio absoluto da natureza, tem levado a uma flagrante degradação ambiental e gerado relações autoritárias entre os homens (e mulheres), influenciando a economia e a política. Com o desenvolvimento tecnológico colocado a serviço do lucro, ignoram-se as consequências negativas para o ser humano. Visões limitadas e corporativas afirmam que a tecnologia resolverá todos os problemas ambientais e a fome será resolvida simplesmente com o crescimento do mercado.
Nesta perspectiva, a maximização dos ganhos impõe-se como o objetivo central da economia e da política, mas é visível que o mercado, por si mesmo, não garante o desenvolvimento humano nem a inclusão social. A história do capitalismo mostra que o grande crescimento econômico tem entrado frequentemente em choque com a vasta produção da miséria, que afeta grande parte da humanidade, configurando sociedades desiguais. O luxo de alguns é sustentado pela pobreza de muitos, que usufruem de más condições de trabalho, precários sistemas de saúde, ausência de saneamento básico e péssimas condições de moradia.
Nem as zonas rurais mais distantes escapam das consequências desta civilização. Vale lembrar uma crônica do padre Paulo Tadeu Barausse, sj, que descreve a situação do rio Itaqui (Campo Largo/PR), no seu tempo de infância: “hoje só restam recordação do passado. O rio Itaqui se encontra doente, maltratado e poluído. É o resultado do “progresso” da falta de sensibilidade da população e das indústrias da cidade que dia após dia, lançam toneladas de lixo em suas águas”.
Todas estas consequências negativas são reforçadas pelo antropocentrismo patológico, que leva o homem a se sentir superior a todas as outras espécies, transformando-as em objetos descartáveis, inclusive o seu próprio semelhante. Este comportamento suicida, que nos leva a colocar em risco a própria humanidade, está na raiz da crise sanitária provocada pelo novo coronavírus. A nossa forma de atuar criou as condições necessárias para o avanço da covid-19, gerando o caos contemporâneo.
As sociedades desiguais, alimentadas pela lógica do lucro e pela arrogância humana, constituem as condições ideais para o avanço descontrolado da Covid-19. A divinização da propriedade privada e o desprezo do bem comum levaram ao descuido da casa comum e do bem-estar do conjunto da sociedade. O desrespeito pela vida humana (e não humana) impulsiona os donos do poder e do dinheiro adotarem a indiferença como política governamental, espalhando a morte e o sofrimento por todos os lugares.
As políticas econômicas que privilegiam os mais ricos e castigam os mais pobres reforçam as desigualdades. Atendendo a interesses escusos, os decisores públicos que compõem o atual governo trabalham sem cessar para fragilizar os direitos do homem e da natureza. Os projetos de privatização dos bens públicos, as decisões que estimulam o desmatamento, as queimadas e a grilagem criminosa colocam em perigo a Amazônia e as poucas florestas que ainda resistem.
Semeando a morte nas periferias das cidades, o coronavírus também avança vorazmente sobre as comunidades rurais, causando o caos e o desespero. Aliada à falta de saneamento, à dificuldade de acesso ao sistema de saúde, à brutalidade dos grandes fazendeiros e à ausência do Estado, a covid-19 projeta fazer das zonas rurais um grande cemitério.
Quem ignorou a mensagem da Laudato Si não pôde se fazer indiferente à mensagem da covid-19. De certa forma, as duas se afinam no mesmo recado: é preciso mudar enquanto ainda há tempo! Assim, a crise provocada pelo coronavírus demonstra a atualidade da Laudato Si. Continuaremos surdos, insistindo no mesmo sistema econômico, no mesmo estilo de vida, na mentalidade colonizadora? Ou nos abriremos para a solidariedade e para o cuidado dos bens comuns?
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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