Por Cleber Oliveira e Valmir Lima, da Redação
MANAUS – Natural de Regente Feijó (SP), o arcebispo de Manaus, dom Sérgio Castriani, de 62 anos, diz que o “dinheiro liberta”. Mas trata de esclarecer que essa tese não contraria os princípios religiosos. “No Pai Nosso, Jesus disse: o pão nosso de cada dia, que é material”, recorda. “Jesus ensinou a usar bem o dinheiro”, enfatiza. Castriani afirma que, no interior do Amazonas, as prefeituras, que detêm o poder econômico, são verdadeiras ditaduras. “Os prefeitos mandam em tudo e todos”. Em entrevista ao programa Expressão no Ar, da Rádio Amazonas Atual, o arcebispo defendeu o direito de acesso ao capital, criticou o que chamou de “alianças invisíveis” na política e alertou sobre o fundamentalismo cristão no Brasil. A entrevista foi concedida na quinta-feira, 4, um dia antes de os partidos fecharem as alianças em Manaus.
Assista a trechos ou leia a entrevista abaixo:
AMAZONAS ATUAL – Em 48 horas, alianças políticas que pareciam consolidadas para as eleições à Prefeitura de Manaus foram desfeitas. Isso o surpreende?
DOM SÉRGIO CASTRIANI – Eu acho que o sistema político no Brasil possibilita essas questões. Surpreende porque até pouco tempo atrás era uma coisa, foi uma guinada muito grande. Agora isso se estende também a nível nacional. Quem governa o Brasil hoje? É o PMDB e o PSDB que são os grandes partidos. Acho que o que aconteceu aqui foi um rearranjo do que está acontecendo a nível nacional. PMDB e PSDB são as grandes forças políticas e é quase natural que a nível local aconteça a mesma coisa.
ATUAL – Essa reviravolta indica uma reconfiguração para as eleições de 2018?
DOM SÉRGIO – Os políticos pensam sempre no futuro, estão sempre pensando na próxima eleição. Acho que esse é outro motivo, mas o motivo principal é essa conjuntura nacional que hoje provavelmente vai continuar, porque dificilmente a presidente Dilma volta. Então, é o PMDB e o PSDB que estarão no poder e em nível local essa aliança também está sendo feita.
ATUAL – Então, o que temos são projetos de carreira política e não de políticas públicas para a sociedade…
DOM SÉRGIO – Isso é um problema, porque eu acho que quando se coloca os interesses pessoais acima dos sociais é um problema. Por isso a CNBB queria uma reforma política para que esse tipo de coisa não precisasse acontecer. Para que os partidos políticos fosse mais fortalecidos e que o eleitor votasse em uma proposta e não tanto em uma pessoa. Acho que o Brasil tem essa questão da governabilidade que coloca em cheque toda a nossa estrutura de governo. Você vota em alguém e quem governa é outro. Há muitas alianças invisíveis que você não sabe, não conhece quem é de fato que governa. Depois que assume o poder você vai saber que ele prometeu a secretaria x para um grupo e outra para outro grupo. Então, você vota em um partido, mas é o outro que governa. Teria que mudar isso para termos uma representatividade melhor.
ATUAL – A esquerda nunca tem uma força eleitoral muito grande no Amazonas. Os militantes se distanciaram de suas ideologias ou passaram a flertar demais com a direita?
DOM SÉRGIO – É muito profunda essa questão, porque no Amazonas em geral a nossa cabeça ainda é muito de seringal. É a relação de patrão e empregado. Você vai no interior e a linguagem é: ‘o meu patrão’. Na loja em que compro o dono é o patrão, aquele que fica com o meu dinheiro. Isso ainda é muito forte nessa estrutura social. Então eu acho que a esquerda, a participação popular, está muito longe de ser fortalecida.
Embora tenha tido na Amazônia muitos experimentos com as comunidades de base. Temos muitas ONGs, mas que não chega perto da estrutura de poder. A estrutura de poder ainda é do patrão. Nossos partidos têm donos, de fulano e sicrano. Sem nenhum julgamento moral, mas o fulano é dono daquele partido, o sicrano de outro. Então fica muito difícil isso. A esquerda ainda tem um longo trabalho a fazer para que o povo entenda que o protagonista é o eleitor, aquele que voto e que a participação política não é só o voto, tem outras formas de participar da política como os movimentos sociais, sindicatos e movimentos religiosos são formas de participar da política.
ATUAL – Há 30 anos, a luta era para que a esquerda tomasse o poder. Então, o Lula, com origem na militância de esquerda, e o PT chegaram ao poder, mas se envolveram em um mar de corrupção. A esquerda perdeu a esperança de mudar o mundo?
DOM SÉRGIO – Acho que foi uma grande decepção. O sentimento, em grande parte, é de tristeza porque a gente se sentiu muito traído. Havia três forças no PT: os sindicatos, os intelectuais e as comunidades de base. Logo que o Lula foi eleito, o pessoal do sindicato tomou o poder e aí já começou a dar errado. Aí se aliou ao Sarney com essa história de governabilidade. A primeira sensação é de fomos traídos. Mas valeu a pena. Acho que sim. Não foi em vão, o Brasil hoje é diferente com participação popular e tem mecanismos democráticos mais fortalecidos. Hoje eu acho que é muito mais importante participar de um conselho paritário do que eleger um vereador. É no conselho paritário que se discute os problemas e se pode ter o controle de políticas públicas mais do que na Câmara dos vereadores. Os conselhos tutelares, por exemplo, é um mecanismo de atuação social, mas não funciona.
ATUAL – O senhor é a favor do voto obrigatório ou do voto livre opcional?
DOM SÉRGIO – Eu acho que o voto deveria ser livre por questão quase de princípio. A liberdade é votar se quiser. De fato, não é obrigatório o voto. O voto é obrigatório quando você precisa tirar o passaporte, fazer concurso público.
ATUAL – O Brasil tem uma lei chamada lei da ficha limpa. Ao criar uma lei da ficha limpa significa que a política é sempre suja?
DOM SÉRGIO – Eu acho que é para proteger os inocentes. A corrupção existe em qualquer atividade humana. Se você quer ser médico, tem que ter a ficha limpa. Para qualquer atividade que você exercer, tem que ter ficha limpa. O político é mais sério ainda porque vai mexer com a coisa pública. Então a lei é para impedir que se candidate aquele que não tenha ficha limpa. Mas eu acho que quem define tudo isso é o eleitor, que é o grande juiz.
ATUAL – O eleitor não tem capacidade de fazer esse filtro?
DOM SÉRGIO – Eu sou contra a cassação de mandatos. Isso só em casos extremos. Acho que o eleitor é que tem que cassar mandato. Essa troca-troca de prefeito no interior, por exemplo, é uma coisa terrível. Você tem cidade que muda de prefeito cinco vezes. É muito problemático isso. A Justiça Eleitoral tem que ser mais ágil e evitar essas cassações porque isso prejudica as administrações e os pobres que pagam o pato. É a escola que não funciona, a merenda escolar que não chega, a saúde que para. Eu vivi essa experiência nos municípios do interior e essa troca de prefeitos não resolve a situação, não moraliza nada.
ATUAL – Pelos candidatos à Prefeitura de Manaus, independente de quem seja eleito, Manaus estará em boas mãos?
DOM SÉRGIO – Pessoalmente, todos os que me procuraram são pessoas muito boas e competentes. Nós temos bons candidatos, pessoas de família, de moral. Mas é difícil saber como eles vão governar uma vez eleitos. Quais as alianças que eles fizeram, quem financiou a campanha, quais os compromissos de campanha assumidos. Aí é que mora o perigo. Como pessoas, eu não tenho nada contra nenhum. Pelo contrário, eu acho que temos grandes nomes no Amazonas.
ATUAL – Quem lhe procurou?
DOM SÉRGIO – O Silas Câmara (PRB), o José Ricardo (PT), o Marcelo Ramos (PR), o Marcos Rotta (PMDB), o Chico Preto (PMN) e outros estão agendados. Foram visitas institucionais para saber se eles representam uma instituição que é a Arquidiocese de Manaus. Há um lado de amizade também. Todos eles são pessoas muito boas, com boas propostas. A gente só não sabe se uma vez eleitos vão cumprir suas promessas.
ATUAL – Os políticos procuram os líderes religiosos pensando no voto dos fieis que esse líder representa. O senhor acredita que esse eleitor vota em um candidato porque ele é aliado com a igreja?
DOM SÉRGIO – A Igreja Católica, já há muitos anos, não tem candidatos oficiais. Talvez algum vereador, uma comunidade mais restrita, mas para cargo executivo há muitos anos não tem candidato. O político não quer que sejamos contra ele porque seria problemático. Então, com todo respeito, a igreja católica normalmente não trabalha nesse sentido, de indicar candidaturas. Claro que temos critérios, por exemplo um vereador. Eu acho que vereador tem que ser conhecido, votar em alguém que eu conheça, que me conheça e não aquele que aparece na hora da eleição. Depois tem o passado do candidato. A gente tem esclarecido que é importante conhecer mais o passado que a promessa, a história do candidato. Depois, as alianças que ele fez e por último as propostas do partido dele porque se o partido tem compromissos com determinado segmento da sociedade, ele vai ser refém desse partido. Se falássemos mal de um candidato, provavelmente ele perderia muitos voto.
ATUAL – Na Câmara Municipal de Manaus há 41 vereadores. Isso é muito ou está coerente com a representatividade da sociedade manauense?
DOM SÉRGIO – Tem vereador demais. É muito vereador. Acho que eles nem sabem as propostas deles e muitos são desconhecidos. Acho que o vereador tem que ser conhecido da população porque é o primeiro da base política. É ele que dialoga com a população.
ATUAL – A Igreja Católica tem grande influência no interior. Qual é a relação que a instituição tem com os prefeitos?
DOM SÉRGIO – Há uma ditadura da prefeitura, o prefeito manda em tudo. As câmaras (de vereadores) não mandam nada. Como são pagas pelo prefeito, o prefeito é quem manda de fato. Temos um Poder Judiciário muito ausente, polícia quase não tem. E pior que nem é o prefeito de fato, são os deles que ficam lá. Lês ficam em Manaus e deixam um secretário mandando, um vice-prefeito. Em geral o vice rompe com o prefeito porque fazem as alianças, mas não cumprem. Quase todos os vice-prefeitos são brigados com os prefeitos, então cria-se uma situação muito ruim e fora de controle social. É difícil administrar no Amazonas. A corrupção também é muito grande, mas eu acho que o problema é que não há controle social.
ATUAL – Essa falta de controle social tem a ver com o mandonismo. As pessoas ficam com medo, intimidadas em cobrar o prefeito…
DOM SÉRGIO – Sim. De fato, a prefeitura é a única que tem dinheiro. Fora isso, o dinheiro que entra no interior é o dos aposentados, dos servidores públicos. Então, quem tem o controle econômico tem o controle político. Por isso a briga pelas prefeituras é tão ferrenha. Se alguém vai contra a prefeitura, acaba tendo que ir embora. Quem perde a eleição, vai embora. Quando ganha, volta. É quase impossível você viver em uma cidade do interior contra o prefeito.
ATUAL – É possível mudar isso ou não há solução?
DOM SÉRGIO – É possível sim. Para isso é preciso ter conscientização e liberdade, principalmente econômica. O povo tem que ter dinheiro na mão. Quando se tem dinheiro você se torna livre. Talvez a grande coisa que o Lula fez, que é o Bolsa Família, foi essa questão que as pessoas passaram a ter dinheiro na mão. Conheço gente no interior que pela primeira vez na vida teve dinheiro, não tinha antes. As pessoas viviam de escambo, trocando mercadorias. Então você ter R$ 50, R$ 200, é dinheiro. Isso faz uma grande diferença. Agora, infelizmente, parou o processo.
ATUAL – Essa sua tese de liberdade a partir do dinheiro é contra alguns princípios religiosos como o franciscanismo, por exemplo…
DOM SÉRGIO – Jesus ensinou a usar bem o dinheiro. Você não vive sem dinheiro. Nós precisamos dos bens materiais. No Pai Nosso, Jesus pediu o pão de cada dia, que é matéria. Quando você depende economicamente de alguém você é submisso a ele, ele manda em você. É isso que acontece, infelizmente, no nosso Estado.
ATUAL – O senhor falou no Lula e no Bolso Família, como o senhor avalia esse processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff?
DOM SÉRGIO – Eu acho que, por enquanto, não mudou nada. O Brasil está no mesmo caminho. Quando dizem que é um golpe, eu me pergunto: quem votou na Dilma votou no Temer também. Era uma chapa. O Temer é o sucessor natural dela. Os votos dados para ela foram para ele também. Sinceramente, não vi nenhuma mudança até agora, economicamente. Se tivesse crescendo economicamente, estava tudo funcionando. Enquanto o Brasil não voltar a crescer economicamente, não tem jeito. Por enquanto, a gente vai ter que esperar.
ATUAL – Os fiéis estão com mais fé e esperança ou estão desiludidos?
DOM SÉRGIO – Momentos de crise são momentos de muita criatividade, muita fraternidade. As pessoas se sentem mais juntas, os valores mais importantes. Eu vejo uma grande vitalidade nas nossas comunidades. Acho que a fé cresce nesses momentos. Não só a fé, como a solidariedade. Agora, a gente sabe que para sair da crise é preciso mais do que isso. É necessário atitudes concretas, políticas públicas, políticas econômicas e eu não sei se o nosso governo tem essa visão.
O que preocupa nesse atual governo é a perda dos direitos constitucionais. A questão indígena, por exemplo, são direitos constitucionais. Quando você quer mexer nesses direitos, tem que mexer na Constituição. Esse é um problema que nós estamos enfrentando que é, com a desculpa da crise, comece a mexer em direitos conquistados pela Constituição.
ATUAL – A igreja tem dado conta de fazer essa conscientização. Como a igreja orienta os fiéis a votar bem?
DOM SÉRGIO –Nós temos grupos de reflexão que se reúnem para debater essas questões. São grupos de fé e política com amplo envolvimento nos debates. Isso tem favorecido essa conscientização.
ATUAL – Para combater a política ruim é preciso ter informação. Como a Igreja pode contribuir para esclarecer os fiéis e evitar que a cobrança vire apenas uma simples reclamação?
DOM SÉRGIO – A tarefa de mudar é de toda a sociedade. E esse trabalho é de vocês, da imprensa e dos meios de comunicação. Hoje um dos trabalhos mais perigosos é o de repórter porque colocam a nu a verdade. É um trabalho em conjunto: imprensa, igreja, grupos sociais. A Igreja trabalha na motivação da fé. Nenhuma organização sozinha consegue isso. Eu desconfio muito de partidos de igrejas, porque quando uma igreja começa a funcionar como partido político, é outro discurso. O Estado é laico e tem que ser laico. Temos que ter também que ter pesquisa, que resulta em conhecimento.
ATUAL – O Brasil está vulnerável ao fundamentalismo religioso?
DOM SÉRGIO – O mundo hoje é mais fundamentalista. A gente fala do fundamentalismo muçulmano, mas o fundamentalismo cristão é também tão perigoso. Eu conheci países da África como a Nigéria. São nações com gente muito bem formada, com intelectuais e que caíram na barbárie. O Brasil pode cair também. Nós temos que estar muito atento a isso. De combater toda a violência religiosa, porque o fundamentalismo religioso existe. Usar a religião, que é a negação da própria religião, para a violência. É um alerta para a gente, esse discurso religioso escondendo segundas intenções.