O maior desafio do trabalho é o fomento da condição humana. Não é simplesmente inventar coisas, construir obras, modestas ou faraônicas, nem prestar todo tipo de serviço, mas sobretudo edificar o próprio ser humano. E reorientar a humanidade a um projeto de desenvolvimento condizente com sua própria dignidade de consciência universal.
Como chegar aí ou a algum lugar por meio do trabalho? Como fazer do “tripalium” algo que humaniza ou dignifica as pessoas? Como reinventar relações que a história, desde os mais remotos tempos, registra como opressivas, violentas, espoliativas ou precarizadas?
Pode-se reconhecer, desde logo, que não é qualquer trabalho que promove a condição humana, embora qualquer trabalho lícito possa ser realizado com dignidade. Só o trabalho digno pode, de fato, dignificar o homem. Infelizmente, não é isso que predominou na história (des)humana.
Na antiguidade prevaleceu o escravismo, modelo no qual não só a mão de obra pertencia aos senhores escravagistas, como também o próprio corpo do cativo ou dos indivíduos da coletividade escravizada. Os escravos eram bens de alguém, tratados como coisas ou mercadorias. A dominação violenta era a maneira sujeitar o indivíduo a essa relação perversa.
Durante o período que se convencionou chamar de idade média, prevaleceram as relações de trabalho servis ou a servidão, marcadas por tradições e costumes diversos, mas aprisionados por dogmas e obscurantismos, semelhantemente mantenedores das dominações e injustiças sociais.
Com o advento do capitalismo, retomou-se o comércio, agora em escala de circulação global, atravessaram-se os oceanos, conquistaram-se novas terras, inventaram indústrias, a venda e o assalariamento da força de trabalho. A prática burguesa gestou o capitalismo e este pariu o trabalhador-operário. Formou-se a classe proletária, que se opôs radicalmente às abusivas explorações, truculentas relações e hediondas condições de trabalho a que estavam sujeitados os trabalhadores, fossem homens, mulheres ou crianças.
No século XIX, Karl Marx propôs, no manifesto comunista, que os trabalhadores se unissem para resistir ao capitalismo e introduzir uma nova organização socioeconômica: o comunismo. O veículo para tanto seria a luta política e a revolução armada, que resultaria na ditadura do proletariado, a fim de dar o primeiro passo: o socialismo. Acreditava Marx e seus simpatizantes que a ditadura do proletariado conferiria justiça às relações sociais de produção, fundando uma ordem social, econômico e política nova, solidária e livre das abusivas espoliações e contradições capitalistas.
Muita coisa ocorreu desde então. Processaram-se lutas e experiências em todos os continentes. Processos repletos de violência e ditaduras que degeneraram em maior violência, opressões, holocaustos, além de graves contradições no âmbito interno do Estado socialista que, a exemplo do que ocorre no capitalismo, reproduzia as injustiças da estrutura social, favorecendo apenas certos segmentos do funcionalismo burocrata. Experiências políticas e econômicas que ao fim resultaram mal sucedidas, mas que em certos momentos forçaram o capitalismo a se revisar, levando-o a tentar superar as cíclicas crises do sistema e a suplantar práticas abusivas contra os trabalhadores. Disso resultaram reinvenções políticas para salvaguardar o próprio capitalismo, tal como o Estado do bem estar social e variadas composições socialdemocratas. Contudo, essas reinvenções deixaram de se justificar com a derrocada do concorrente – o socialismo real. Então, o velho e injusto capitalismo, em sua neo-versão devoradora de direitos e dignidades, ameaça fazer do futuro uma repugnante “repetição” do passado. Ainda mais nesses tempos de ampliação do exército de reserva (mão-de-obra disponível) com o crescente desemprego e precarização das relações de trabalho.
Algo sistêmico, imposto pelo padrão de competitividade made in China, dentre outros, que praticamente impedem ou inviabilizam a atuação do empreendedor de livre iniciativa com compromissos sociais. Difícil época ao “capitalista esclarecido” ou empresário responsável. Quase nenhum espaço restou ao empreendimento, negócio ou empresa entendida como operadora de desenvolvimento econômico, humano e social, modelo proposto por alguns estudiosos que perseguiram a conciliação entre capital e trabalho desde o século XIX (vide Rerum Novarum, encíclica de Leão XIII). Uma era que praticamente impõe o perfil “burguês gangster” ou “capitalista abutre”, exigindo do empreendedor respeitável não só consciência e compromisso ético social nos negócios, mas também bastante criatividade e articulação, às vezes, de dimensão planetária.
E, com isso, a questão do sentido do trabalho humano prossegue ainda mais distante de ser enfrentada, amadurecida e bem direcionada. O trabalho é separado do propósito de servir ao desenvolvimento do ser humano. Prossegue distante de sua missão humanizadora, uma vez que limita o fazer humano a mais uma mera mercadoria que se vende no mercado, sem a garantia de que servirá ao menos para promover um básico de dignidade. O modelo econômico leva em conta somente o potencial consumista da humanidade. Cidadãos são apenas os que efetivamente podem consumir. Radicaliza-se, nesse sentido, o projeto de identificar o ser humano como mero consumidor ou fornecedor na cadeia produtiva. Desse modo, o trabalho fica reduzido à mera produção de coisas e de serviços sem que isso seja feito de um modo a fomentar o desenvolvimento da pessoa e da comunidade humana. Quando muito, permite ao trabalhador que subsista em condições bastante questionáveis de dignidade. Por conta disso, quando se analisa a conjunção de fatores, percebe-se que esse modelo é predominantemente responsável pelos impactos nocivos sobre o meio ambiente e a segurança pública, seja num plano local seja numa dimensão planetária.
Embora excessivo e essencial para manter o modelo produtivo e socioeconômico vigente, o trabalho permanece apequenado de sentido, na atual versão do capitalismo financeiro e especulativo. Reduz-se ao exercício de fazer coisas e mais coisas que gerem dinheiro pra comprar outras coisas ou serviços. O trabalho humano perdura aprisionado num vicioso ciclo que está levando as pessoas ao adoecimento em massa (esgotamento físico e mental, depressão, níveis preocupantes de estresse e ansiedade, vazio de sentido, obesidade mórbida, síndromes e patologias diversas), inflando os indicadores de violência e criminalidade, desintegrando as parcas conquistas civilizatórias edificadas, impondo acelerada degradação do planeta, exposto a gravíssimos riscos. Capitalismo e socialismo não se detiveram, de fato, em desenvolver novos modelos de trabalho humano, mas apenas de empregá-lo ao máximo para realizar seus fins utilitários. Portanto, antes que seja proibido, em face do cenário que está sendo aceleradamente montado, aproveitemos para questionar: que perspectiva resta ao trabalho humano em nosso tempo? Seria apenas esse ciclo estéril de produção/consumo de coisas, produtos, serviços e sensações o sentido do fazer e da vida humana? Estaremos, de fato, condenados a repetir o dantesco passado?
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