Por Alessandra Taveira, da Redação
MANAUS – Pelo relato carregado de emoção, Vandira Gomes, de 51 anos, faz parecer tentador trocar a vida na cidade pela mansidão do campo. “Pretendo não sair mais porque eu gosto daqui”. Ela deixou um apartamento no residencial Viver Melhor, na zona norte de Manaus, para se instalar no Ramal Nova Aliança a 18 quilômetros da entrada de Manacapuru (a 86 quilômetros de Manaus). A mudança não estava nos planos de Vandira, mas aconteceu em 2020, quando a pandemia atingiu o Amazonas.
“Morar aqui é melhor porque temos com o quê trabalhar. E nós mesmos fazemos nosso horário”, disse. Os dois filhos, Gelson e Jean, também perderam o emprego “por causa dessa doença aí”. Gelson, 36 anos, seguiu a mãe para ajudar o pai, Alberto, 54 anos, – que é pedreiro –, a construir a casa de madeira na nova propriedade. Jean foi atrás, mas depois de um tempo no sítio arrumou emprego e voltou para a cidade. “Mas ele disse que vai voltar”, afirmou Vandira, crente de que a família se reunirá por completo novamente.
Vandira trabalhava como auxiliar de serviços gerais em uma escola pública da capital. No ano passado, o sítio em Manacapuru passou a ser frequentemente visitado pelo marido desde que ficou desempregado, uma vez que a pandemia abalou o setor de construções. Não tinha mais trabalho.
A residência, erguida às pressas, é de um cômodo só. No mesmo espaço estão dispostas as camas e os móveis da cozinha. Não há divisões e o banheiro, naturalmente, fica do lado de fora. “A gente quer dar uma melhorada aqui. Essa casinha só é ‘assim’, mas todo fim de semana eu recebo gente na minha casa”.
As plantações de maracujá, abacaxi, macaxeira e pupunha são cultivadas por Alberto, que se gaba pela exímia produção de farinha. Ele explica que, pontualmente, às 13h, as flores de maracujá se abrem para o processo de polinização. “Se começar mais tarde, às 14h, não funciona porque começa a chegar abelha para roubar o pólen. Se não fizer logo, ela leva”. O trabalho termina às 18h.
A família aprendeu na prática a tirar o sustento da terra. Após seis meses morando no sítio foi que Alberto pegou o jeito, aperfeiçoou seus métodos e, hoje, colhe maracujás “macetas” – grandes.
Em média, são colhidos 500 kg de maracujá por semana, dos quais Vandira ensaca 250 kg da polpa. “Eu não sabia de nada no início. Plantei tudo isso aqui sozinho. Fiquei sem emprego na pandemia, vim ‘pra’ cá e pensei ‘vou ter que me virar’”, disse Alberto.
As 12 fileiras da horta têm, em cada, 250 pés e 60 metros de comprimento. “Eu que meti essas estacas aqui e ainda pretendo aumentar”.
Neo-ruralismo
Vandira e Alberto não são os únicos “novos rurais”. Cinquenta famílias moram e produzem alimentos no Ramal Nova Aliança. Devido à pandemia, o fluxo de pessoas na área aumentou e um perfil incomum ao ambiente rural apareceu. O movimento de quem migra da cidade para o campo, fazendo o inverso ao êxodo rural, é denominado na antropologia de: neo-ruralismo.
O casal de policiais militares Hellen Amaral e Itamar Amaral, já aposentado, está de mudança para o sítio da família no Nova Aliança. Eles afirmam ter estabilidade financeira e dizem que a transição ocorre porque querem uma vida pacata e propícia para a criação dos filhos.
“Resolvemos nos mudar porque a gente percebeu que dá para ter uma qualidade de vida bem melhor. Já temos internet lá no sítio, então o home office funcionou para a gente. Outras pessoas do ramal estão nesse mesmo processo”, disse Hellen.
O casal aproveitou a paralisação das atividades na capital, decretada pelo governo do estado como medida contra a Covid-19, e resolveu permanecer no campo. “Nós, que ainda temos alguma estrutura, a gente já sente, imagina quem não tem tanta estabilidade financeira”, disse Itamar.
Êxodo urbano
Em meados da década de 1960 até 1980, a migração do campo para a cidade, explica o antropólogo Alvatir da Silva, foi transmitida à sociedade como algo “atrativo”. As pessoas saíam em busca dos “benefícios” que a cidade oferecia. “Essas percepções se estenderam para os livros didáticos que temos hoje distribuídos nas escolas, e escondiam que os campos no Brasil são lugares de conflitos constantes”, disse.
Conforme o antropólogo, o atual contexto de “inversão” do êxodo acontece com “pessoas que têm apego pela vida na beira do rio, à vida na floresta e à pequena pecuária, por ter na sua memória social uma vivência”.
No caso dos policiais neo-ruralistas acontece de “a família de classe média, com certa estabilidade, adquirir um pequeno lote rural com possibilidades de agricultura limitada pela legislação, geralmente em lote de 40 hectares que permite trabalhar em 8 hectares, e retorna para uma vida que tem muito a ver com agricultura familiar, só que com limitação de produção”, explica Alvatir da Silva.
Apesar dos benefícios, moradores antigos do ramal criticam a falta de assistência para manter a produção agrícola e a inviabilidade para se trafegar na estrada do ramal. “Falta capital pra gente investir na área, a gente sabe que tem condições (de recebermos auxílio). Esse ramal também tá horrível pra trafegar, tanto é que nossa moto tá com problema. Não temos apoio de ninguém, mas a gente sabe que tem capital pra investir na agricultura, mas não chega aqui”, disse a agricultora Maria Célia, de 54 anos.
“A gente tá tirando só a polpa do maracujá para vender porque se for vender em unidade, o quilo da fruta, tá muito barato. O nosso investimento é muito alto. Uma saca de adubo é um absurdo de caro. Cada vez que você manda comprar uma saca de adubo tá outro preço, e vai aumentando. E quando o pessoal vai comprar o produto da gente, querem dar R$ 2 no quilo”, completou.
Na segunda-feira, 23, a reportagem do ATUAL esteve em Manacapuru para ver de perto a vida de pessoas que resolveram migrar da cidade para o campo. Assista ao webdocumentário roteirizado por Alessandra Taveira, produzido por Murilo Rodrigues e editado por Walter Franco.
(Colaborou Murilo Rodrigues)