Nesta semana em que comemoramos os 5 anos da Encíclica Laudato Si – sobre o cuidado da casa comum (Papa Francisco, 2015), o Brasil se depara com mais uma iniciativa dos setores ruralistas, que tentam depredar o planeta, incentivando o desmatamento das florestas e legitimando a posse ilegal de terras públicas. Estes setores ensejam aprovar a MP 910/2019, que tramita na Câmara dos Deputados sob a referência de PL 2633/2020.
O referido Projeto de Lei busca regularizar enormes extensões de terra, tanto na Amazônia Legal quanto nas outras regiões do Brasil, outorgando a propriedade de terras ilegalmente ocupadas por grandes grileiros interessados em áreas de proteção ambiental. É fato que a grilagem tem também proporcionado o desmatamento de expressivas áreas florestais causando a destruição da natureza e a deterioração da vida no planeta.
Preocupado com os efeitos devastadores nas florestas amazônicas e brasileiras, o Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) emitiu uma nota (11 de maio de 2020), pedindo para que tal projeto não seja votado diante das atuais circunstâncias. Na nota, Dom Walmor Oliveira de Azevedo destaca que o Brasil atualmente passa por uma crise sanitária de gravíssimas dimensões provocada pelo novo coronavírus, necessitando do envolvimento integral das forças políticas e sociais para equacionar os efeitos da tragédia em curso.
Diante de tal tragédia, o religioso assegura que o Brasil não se encontra em condições de debater a MP 910/19 (PL 2633/20), pois toda a sua população está sensivelmente afetada pelos efeitos da Covid-19, que entra nas famílias, ceifando milhares de vidas e promovendo sofrimento. Para o arcebispo, é inconcebível a aprovação de uma Lei de tamanhas consequências para o planeta num período em que se recomenda o isolamento social, ou seja, quando não é possível a realização de um debate democrático, em que a população possa acompanhar a apresentação de argumentos e contra-argumentos, visando chegar a um consenso maduro sobre a ocupação de terras de gigantescas extensões.
Nesta mesma linha de preocupação, o Ministério Público Federal emite Nota Técnica (19 de maio de 2020) sobre o PL 2633/2020, expondo as incoerências da proposta. Um dos primeiros aspectos mencionados pelo MPF diz respeito à inadequada rapidez com que se pretende aprovar as medidas em pleno período em que o país enfrenta uma funesta pandemia. Para o MPF, medidas legislativas com manifestos impactos ambientais, devem ser amplamente debatidas, especialmente pelo risco de descumprimento de acordos internacionais.
O MPF denuncia que o rito acelerado de votação não prevê esforços orçamentários ou de recursos humanos para a eficiência da regularização fundiária e promove a fragilização dos mecanismos de fiscalização, especialmente as vistorias, tornando mais flexíveis as clausulas resolutivas ambientais, em um contexto de pandemia, em que discussão e o aperfeiçoamento do texto legislativa encontra-se fortemente limitados.
O PL também prejudica os processos de demarcação das terras indígenas. Segundo o MPF, o PL prevê a emissão de títulos de propriedade, desconsiderando eventual sobreposição com terras indígenas que passam pelo processo de demarcação, sendo levadas em consideração somente as terras cujos processos já estejam finalizados. Além disso, o PL permite a regularização em prol de cooperativas de produtores rurais, mas não o permite em benefício de cooperativas de quilombolas ou indígenas.
O PL viabiliza a regularização de áreas ocupadas mediante prática de infrações ambientais, notadamente o desmatamento, bastando ao interessado aderir ao Programa de Regulamentação Ambiental (PRA). Ademais, 95% do público-alvo do programa proposto já se encontram contemplados em lei vigente (Lei 11.952/2009), portanto, o PL 2633 será aprovado para beneficiar somente 5% do público previsto.
Por incrível que pareça, O PL 2633 permite que servidores públicos e agentes políticos, tais como prefeitos, deputados, senadores, juízes, membros do Ministério Público, fiscais ambientais, servidores das prefeituras, dentre outros, beneficie-se de regularização fundiária de áreas das quais tenham a posse, ainda que tenham promovido atos de invasão de glebas públicas criminosamente.
Esta preocupação é justificada pelo fato de a prática de ocupação de terras públicas mediante invasões está associada a uma série de crime, dentre eles, a própria invasão de terras públicas, o desmatamento de florestas em terras públicas, a falsidade ideológica, o estelionato contra a União Federal e contra agentes privados, a lavagem de dinheiro, e até mesmo a formação de milícias para a proteção de grileiros e desmatadores.
Para o MPF, em suma, o PL 2633/2020, que poderá ser aprovado nesta semana, acabará por fomentar a prática de delitos, violando normas constitucionais importantes. Este PL produzirá prejuízos, não somente ao patrimônio ambiental e biológico, mas também aos direitos de povos indígenas que há séculos habitam a Amazônia e outras regiões do Brasil. O PL 2633/2020, portanto, representa uma agressão à nossa casa comum, contrariando aos apelos da Encíclica Laudato Sí.
Neste Documento, o Papa Francisco demonstra lucidez em relação aos desafios de cuidar da casa comum. Para ele, muitos esforços na busca de soluções concretas para a crise ambiental acabam frustrados não só pela recusa dos poderosos, mas também pelo desinteresse dos outros. Esta realidade, no entanto, poderá nos abrir os olhos para reconhecer a urgência e beleza do desafio que temos pela frente.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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