A pandemia do coronavírus que ameaça o mundo atualmente demanda o acesso universal à água potável como uma das principais medidas de prevenção e cura a ser tomada pela sociedade e seus representantes. Entre as primeiras atitudes recomendadas para a eliminação do vírus é lavar as mãos e reforçar a higiene. Para que isso ocorra é necessário que todas as pessoas tenham acesso à água em quantidade e qualidade adequadas.
Os últimos índices fornecidos pelo Sistema Nacional de Informação sobre o Saneamento (SNIS-2018) indicam que Manaus não está preparada para enfrentar a pandemia que hoje nos assola e tende a piorar nos próximos dias. O SNIS revela que Manaus possui indicadores que a colocam entre as 10 piores cidades no ranking das 100 maiores metrópoles brasileiras. Este é o estado em que se encontram os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário da capital amazonense, que atualmente é realizado pela empresa Águas de Manaus, concessionária privada controlada pelo grupo Aegea Saneamento e Participações.
Durante duas décadas de atuação, a gestão privada dos serviços de água e esgoto de Manaus tem caminhado na contramão do discurso da eficiência, demonstrando que não veio para melhorar a qualidade de vida da população – muito menos dos setores mais pobres –, mas primeiramente para elevar os lucros dos empresários da água à custa do sofrimento do povo e da exploração dos mananciais hídricos da Amazônia.
Todas as pessoas estão sujeitas a contrair o coronavírus, mas as classes pobres são as mais vulneráveis, pois além de viver em situações de precariedade social (habitação inadequada, sistema de saúde deficitário e direitos fundamentais desrespeitados), elas não apresentam condições financeiras para enfrentar o vírus. Estas classes são justamente aquelas cujos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário são mais insatisfatórios na cidade de Manaus.
Como estas pessoas tomarão as medidas necessárias para se prevenir contra o coronavírus sem terem acesso efetivo e continuado ao abastecimento de água potável? Como elas reforçarão a higiene sem usufruir de uma rede de esgotamento sanitário adequada? É notável como esta crise explicita a relação entre saneamento básico e saúde!
Os órgãos de defesa do consumidor afirmam unanimemente que a Águas de Manaus é uma das empresas mais reclamadas, sendo que estas reclamações provêm, sobretudo, das periferias da cidade. Na lógica empresarial, não há espaço para aqueles que não podem pagar. A experiência de Manaus mostra que a privatização de serviços essenciais como a água e o esgoto provoca a exclusão automática de expressivo contingente populacional. A tarifa cobrada pela empresa privada está entre as mais caras da Amazônia e do Brasil, negligenciando aqueles que não podem pagar.
Nas cidades marcadas pela desigualdade social, como é o caso de Manaus, a privatização dos serviços de água e esgotamento sanitário é uma política de reforço à injustiça social. Trata-se normalizar a exclusão social baseando-se no critério econômico. Só tem vez aquele que pode pagar. A noção de direitos desapareceu, cedendo espaço para a loucura da razão econômica.
A tarifa social da água, que é negada para mais de 100 mil famílias pobres, trás à tona a perversidade da privatização. Segundo o SNIS/2018, somente 26.870 famílias são contempladas por este subsídio dentro de um universo de 130 mil famílias que têm direito ao benefício. Este fato confirma as palavras de David Harvey quando ele diz, num contexto mais amplo, que grande parte da população mundial já se tornou redundante e descartável. Nas suas investigações, este estudioso constata que o capital nunca hesitou em destruir pessoas, quando se trata de lucrar.
Quanto mais se propaga na Amazônia a lógica do capital que não hesita em destruir pessoas para lucrar, mais nos habituaremos com a exclusão social. A sociedade se esquece dos valores humanistas (solidariedade, fraternidade, dignidade, liberdade e igualdade) que a estimula a buscar o melhor que há no humano, substituindo-os por contravalores configurados pela razão econômica. Perderemos a nossa humanidade.
Na sua Exortação Apostólica, Querida Amazônia – ao povo de Deus e a todas as pessoas de boa vontade (Edições CNBB, 2020), o Papa Francisco lembra que não é salutar habituarmo-nos ao mal; faz-nos mal permitir que nos anestesiem a consciência social, enquanto um rastro de dilapidação, inclusive de morte por toda a região, coloca em perigo vida de milhões de pessoas. Por isso é preciso indignar-se e partir para a luta social, que segundo o Pontífice, implica capacidade de fraternidade, um espírito de comunhão humana.
Para que seja possível visualizar um mundo mais justo, democrático e fraterno é necessário colocar limites ao mercado, que tudo transforma em mercadoria para manter um processo de acumulação desigual. Direitos essenciais como a água e o esgoto não podem ser submetidos aos caprichos do mercado enquanto milhares de pessoas são descartadas e atingidas mortalmente na sua saúde e dignidade.
A crise do coronavírus é uma oportunidade para repensarmos a politica de saneamento de Manaus, assim como outros setores essenciais da sociedade, como saúde, moradia, transporte, educação e meio ambiente.
A gravidade e a radicalidade do coronavírus impõe a necessidade de planejarmos um saneamento para todos. Um saneamento público, eficiente e universal. A insistência na privatização do saneamento que discrimina os mais pobres tornará mais vulnerável a humanidade diante das mazelas que a atingem. Contra a dinâmica irrefreável da economia que mata é preciso fomentar a consciência do valor do comum, que nos tira do individualismo e nos lança para o cuidado do outro, nos dotando de uma visão mais holística e fraterna. A crise do coronavírus talvez nos faça retornar a esta atitude, que é cada vez mais esquecida: o cuidado com o outro.
É necessário que o Estado cumpra com a sua obrigação de garantir pelo menos o mínimo suficiente para todo cidadão e cidadã. Para que isso ocorra, ele precisa ponderar os interesses mercadológicos, que devastam nossas florestas, saqueiam nossas terras, poluem nossos rios, mercantilizam nossas águas, privatizam os bens comuns, fragilizam a nossa democracia, sequestram a nossa politica, aprisionam nossas instituições e desfiguram a nossa humanidade.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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