O reconhecimento do acesso à água e ao saneamento como direito humano pela ONU (Organização das Nações Unidas), em 28 de julho de 2010, estabelece a responsabilidade dos Estados Nacionais pela busca da universalização destes serviços essenciais (Resolução 64/292).
Este direito é resultado de um grande esforço de diversos movimentos sociais e comunidades populares contra a lógica da apropriação privada dos bens comuns, que torna a água um privilégio de reduzidos setores sociais. Trata-se de mais um passo na evolução civilizacional da humanidade que preconiza a proteção dos seres humanos perante as múltiplas vulnerabilidades e defende o usufruto por parte de todos os homens e mulheres dos bens da natureza na proporção mínima para uma digna sobrevivência.
A atribuição desta tarefa ao Estado é sustentada pelo fato de haver uma intensa competição pelo controle dos grandes mananciais hídricos envolvendo poderosos agentes econômicos (conglomerados multinacionais, organismos financeiros internacionais e países ricos), que buscam circunscrever o acesso deste bem insubstituível somente aos setores produtivos que geram lucros e dividendos: o agronegócio, a indústria e o mercado. Assim, o direito humano à água e ao saneamento é posto em perigo, pois parte significativa da população não consegue responder às expectativas de lucro destes empreendimentos.
Para minimizar este perigo, em 2015, a ONU propôs para a Conferência das Nações um conjunto de 17 objetivos, visando criar condições de melhoria da qualidade de vida dos 7 bilhões de habitantes do mundo e aperfeiçoar a sua interatividade entre si e com o planeta. Entre os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), encontra-se o 6º Objetivo, que diz respeito à universalização do acesso à água potável e ao saneamento até o ano de 2030.
É uma chamada de atenção para a sociedade civil e os Estados Nacionais, incentivando que estes redobrem os esforços na implantação do direito à água e ao saneamento, que vem sendo cada vez mais prejudicado pela atual conjuntura política, econômica e social, que promove uma espetacular concentração de renda nas mãos de poucos e um amplo empobrecimento da maioria da população mundial.
Em muitas partes do mundo, ao invés de buscarem aperfeiçoar o funcionamento das empresas públicas ou criarem alternativas que tornem mais acessíveis os serviços de água e esgotamento sanitário, têm-se priorizado os interesses das grandes empresas privadas de saneamento, em detrimento das populações mais pobres, vindo a prejudicar as comunidades populares em relação à satisfação das suas necessidades mais básicas.
É possível identificar a cidade de Manaus na composição deste cenário. Na esteira de uma polêmica e conturbada privatização da empresa pública que realizava os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, ao longo de duas décadas a capital amazonense tem sofrido brutas impactos de serviços precários, sem boas perspectivas de universalização. Além dos dados oficiais do Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (SNIS 2017), indicando um total de 228.889 pessoas sem acesso à água potável, a concessionaria privada Água de Manaus exclui dos serviços de tratamento de esgoto um contingente aproximado de 1.869.202 habitantes.
Diante de um total de 128 mil famílias com direito à tarifa social pelos serviços de água e esgoto, a empresa contempla somente 16 mil, segundo as informações do SNIS. Trata-se das famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF), que têm direito a pagar somente 50% do valor da água, quando usam até 15m³/mês. Além deste direito ser violado, com anuência total do poder público municipal, a atual crise econômica amplia a cada dia o número de famílias pobres, que não aparecem nos registros dos programas sociais, sendo totalmente ignoradas pelos poderes públicos e pela empresa responsável pelos serviços de água e esgoto.
Este contexto mostra que o direito à água e ao saneamento é descumprido em Manaus, colocando em tela a irresponsabilidade da empresa privada perante a sociedade e a omissão dos poderes públicos perante o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Cultuais, que reivindica o direito humano à água e ao saneamento.
Sob estas circunstâncias, o Fórum das Águas, eleito pela população para compor o Conselho Estadual de Saúde, assume uma importante missão diante da sociedade manauense. Trata-se de fazer eco às lutas dos movimentos sociais e comunidades, denunciando a violação do direito humano à água e ao saneamento em meio à onda privatista que dificulta cada vez mais o acesso à agua potável e ao saneamento às populações mais pobres.
O surgimento do Fórum das Águas, em março de 2012, é resultado dos apelos das comunidades das periferias manauenses que padeciam e padecem os impactos dos serviços precários realizados por uma concessão privada que visa responder, em primeiro lugar, à ambição pelo lucro. A história desta privatização porta numerosas demonstrações de que o mercado da água não oferece uma solução plausível para a falta de água e dos serviços esgotamento sanitário e contemple a complexidade da cidade de Manaus.
O Fórum das Águas incorpora localmente os valores e apelos dos movimentos globais que lutaram e conseguiram registrar na legislação internacional o ideal de uma humanidade que se organiza para proteger e assegurar o direito à vida. De certo modo, a sociedade é resultado da coalizão das forças que nela residem. Assim, o reconhecimento Internacional do direito humano à água e ao saneamento alimenta a esperança de que a economia pode ser organizada para responder as necessidades da sociedade (humanidade). O contrário não é eticamente sustentável, principalmente quando a economia está atrelada aos interesses de setores sociais elitizados.
É necessário mostrar que a violação do direito á água e ao saneamento não cessará enquanto o Estado não assumir a sua responsabilidade como garantidor do bem comum. Para que isso ocorra é preciso que o poder econômico, que comando o aparato estatal, seja colocado no seu lugar. Os direitos fundamentais, expressão da evolução ética da humanidade, não devem ser ofuscados pelos interesses das grandes empresas e do mercado financeiro. A democracia (e a sociedade) não deve ser refém de uma economia que mata.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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