EDITORIAL
MANAUS – Existem semelhanças e diferenças entre os atos antidemocráticos de seguidores de Jair Bolsonaro e os que apoiaram o golpe de 1964, que impôs 20 anos de ditadura militar, com o cerceamento de liberdade, censura e mortes de opositores ao regime dos quartéis.
As pautas são as mesmas: hoje como em 1964, os manifestantes não aceitam o governo do presidente eleito pelo voto popular. Nos dois momentos, dizem defender a liberdade, a família, a propriedade privada e a pátria. Aqui como lá, alardeiam que querem livrar o Brasil do comunismo e da corrupção.
O Brasil de 1964 era “tremendamente” católico, e foram as mulheres católicas, apoiadas por padres reacionários, empresários e militares, que saíram às ruas para pedir derrubada do governo de João Goulart. Defendiam valores que, segundo elas, haveriam de se perder caso Goulart se mantivesse no poder e instaurasse o comunismo em terras brasileiras.
O movimento que culminou com o golpe de 1964, na verdade, foi iniciado em 1962, e era liderado por mulheres parentes próximas de grandes líderes do setor empresarial e militares que participaram ativamente do golpe de Estado.
Agora, em 2022, são mulheres mães e moças de família, a maioria “tremendamente evangélicas” que se concentram em frente aos quartéis do Exército. Há católicas, também, mas em quantidade menor, e sem o apoio das cúrias e da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
Como no passado, os movimentos em frente aos quarteis são financiados por empresários que apoaiaram o governo de Jair Bolsonaro.
As evangélicas e católicas defendem as mesmas pautas: Lula não pode assumir o poder porque, na visão delas, é contra a família, a favor do aborto, a liberação da maconha, contra a propriedade privada, a favor do comunismo etc. etc. etc. Hoje como em 1964, as pautas nunca foram defendidas por Lula ou por Goulart, mas essa mentira é repetida à exaustão e ganha ares de verdade.
Apesar de tantas semelhanças, há uma diferença essencial dos movimentos de hoje e de outrora. João Goulart era vice-presidente e se tornou presidente com a renúncia de Jânio Quadros, este eleito presidente em 1960.
Naquela eleição eram eleitos o presidente mais votado e o vice-presidente mais votado, independente de chapa. João Goulart era o candidato a vice-presidente na chapa do marechal Henrique Teixeira Lott, principal adversário de Jânio Quadros. E foi eleito vice-presidente.
Jânio Quadros tinha apoio popular, foi o presidente mais votado da história do País até àquela eleição, e não teria motivos para renunciar no sétimo mês de governo. A renúncia, na verdade, foi uma tentativa de golpe. Na véspera, ele enviou o vice-presidente João Goulart à China comunista para uma missão diplomática, e calculou que por estar na China, não teria apoio para assumir.
Jânio Quadros apostava que com a renúncia, a população sairia às ruas pedindo o retorno dele. Retornando nos braços do povo, imaginava que teria força para fechar o Congresso Nacional e governar como um ditador. Nada do que ele planejou aconteceu, e o Congresso Nacional aceitou a renúncia.
Goulart era do Partido Trabalhista Brasileiro, que tinha membros próximos aos partidos comunistas de países que adotavam esse regime político-econômico. O mundo vivia a Guerra Fria, uma disputa ideológica entre Estados Unidos e União Soviética, que influenciava as decisões de praticamente todos os países, e levou os Estados Unidos a apoiar ditaduras com o discurso de combater o comunismo.
A Guerra Fria foi encerrada em 1989, com a queda do Muro de Berlim e a abertura econômica da União Soviética. Hoje, o comunismo não é mais ameaça nem política nem ideológica ao mundo. Mesmo os países ditos comunistas já abriram suas fronteiras à economia capitalista, exceto a Coreia do Norte e Laos. China, Cuba e Vietnã, outros três países sob o domínio de regimes comunistas, já estão inseridos na economia de mercado.
Portanto, o medo do comunismo que havia em 1964 só existe na cabeça de fanáticos. Esse ponto está pacificado. Dificilmente os apoiadores de Jair Bolsonaro vão conseguir apoio pelo discurso anticomunista.
Lula tem como vice um dos políticos mais repeitados pelo empresariado brasileiro. O Congresso Nacional não emite qualquer sinal de resistência à posse do presidente e do vice eleitos. O mundo, inclusive os Estados Unidos, reconheceram imediatamente a vitória de Lula nas urnas.
Sobram as pautas de costumes. Como essas pautas foram erigidas sobre uma montanha de mentiras, dificilmente se sustentam. Aos poucos, à medida que o Governo Lula e Alckmin avançar, a população vai tomando os choques de realidade necessários para acalmar os ânimos dos mais afoitos.
1964 não se repetirá no Brasil e a democracia vai, novamente, derrotar o autoritarismo.