Uma criança de 4 anos vai ao comércio em frente à casa onde mora, a mando da mãe, comprar uma barrinha de sabão. Volta sem o troco e com uma bala escondida no bolso. A mãe desconfia de que a criança comprou uma bala sem o consentimento dela, mas releva, e sequer chama a atenção.
Mais tarde, já com 15 anos, adolescente, aquela criança que escondeu a bala era campeã de “cola” na escola; burlava qualquer processo de fiscalização adotado pelos professores e se dava muito bem, com notas excelentes; nas vezes em que foi flagrado colando os pais foram comunicados, mas não deram a importância devida à atividade condenável do filho. Os pais também lembravam de que na escola andaram burlando as regras para se dar bem.
Na prova do primeiro concurso público, o jovem recém saído da universidade conseguiu ficar entre os melhores, graças à contratação pelos pais de uma “empresa especializada em equipamentos eletrônicos” para ajudá-lo a responder as questões com o uso de escuta clandestina. Aquele menino que escondeu a bala no bolso aos quatro anos, agora estava bem posicionado no serviço público, com um cargo que lhe garantiria um futuro promissor.
Mas o salário acima da média brasileira não lhe era suficiente para bancar as baladas, as roupas de grifes, os carros da vez e as viagens anuais. A necessidade o obrigou a fazer negócios dentro e fora do ambiente de trabalho. Em pouco tempo, o jovem funcionário público tornou-se um notável negociador de contratos com instituições sem fins lucrativos e empresas privadas que lhe rendiam uma boa renda extra. A acumulação de riqueza saltava aos olhos e era motivo de orgulho para os pais, que só enxergavam no filho um porto seguro para a aposentadoria.
Certa vez, indagado por um amigo sobre a possibilidade de ser apanhado pelos órgãos de controle, o brilhante funcionário riu e respondeu: “no Brasil, estamos todos no mesmo barco”. E deu sequência a uma análise em que apontava a corrupção em todos os setores da sociedade, desde a reserva de lugar nas filas, passando pelo recebimento de favores, a indicação de amigos para funções de confiança ou cargos público de livre escolha, que ignoram a capacidade técnica… Pediu que o amigo analisasse o comportamento da polícia diante do crime organizado; lembrou de como age o Poder Judiciário, desde a morosidade proposital no julgamento de processos até as decisões compradas a peso de ouro; criticou os membros do Poder Legislativo, que estão no cargo para garantir regalias a si e aos seus; deu exemplos de casos em que o Ministério Púbico e os Tribunais de Contas, os fiscais da lei e da ordem públicas, extrapolam o limite do aceitável ao criar vantagens aos seus membros, sem o menor pudor. Desceu do patamar dos poderes constituídos e refrescou a memória do amigo com fatos como os mostrados em vídeos na rede mundial de pessoas saqueando cargas de caminhões envolvidos em acidentes, sem se importarem com os feridos agonizando…
Depois de um longo discurso que deixou seu amigo boquiaberto e sem palavras, o jovem lembrou que tinha um compromisso: se preparava para uma manifestação contra a corrupção no País. Horas depois, estava lá, com outros milhares, pedindo mudanças, sem se importar nenhum pouco em dar o pontapé inicial rumo a uma revolução cultural sem a qual não haverá saída para o Brasil.
Valmir Lima é jornalista, graduado pela Ufam (Universidade Federal do Amazonas); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia (Ufam), com pesquisa sobre rádios comunitárias no Amazonas. Atuou como professor em cursos de Jornalismo na Ufam e em instituições de ensino superior em Manaus. Trabalhou como repórter nos jornais A Crítica e Diário do Amazonas e como editor de opinião e política no Diário do Amazonas. Fundador do site AMAZONAS ATUAL.
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