Época de grande relevância no mundo cristão, a Páscoa recorda a vitória de Jesus Cristo sobre a morte. Na perspectiva cristã, então, a vida vence a morte, o amor vence o ódio e a esperança não sucumbe frente à guerra, à tirania e ao autoritarismo. Nos dias atuais, marcados por agressões à vida humana e não humana, necessitamos deste momento de renovação para continuarmos lutando contra mentalidades e políticas de destruição globalmente implantadas, atingindo o Brasil e a Amazônia.
Ao longo dos próximos cinquenta dias, o tempo pascal nos proporcionará a oportunidade de refletirmos sobre as nossas posturas pessoais, coletivas e institucionais, verificando se elas promovem e defendem a vida nas suas mais diversas expressões.
A vida ressurrecta, inaugurada por Jesus Cristo e celebrada na Páscoa, nos convida a repensarmos as nossas relações vitais, corrigindo rotas, opções e visões. Na medida em que a vida é resgatada, sendo projetada como valor incomensurável, é urgente que tenhamos consciência de que muitas das nossas práticas promovem a morte, a divisão e o ódio.
Somente tendo minimamente consciência destas práticas e de suas consequências desastrosas poderemos falar sobre a vida, nos esquivando de discursos abstratos e vazios. Essa fala deve ser corroborada pela solidariedade com aqueles cujas vidas são mais ameaçadas, entrando em conflito com paradigmas e modos de proceder atualmente em voga. Não é possível falar sobre vida sem termos em mente as agressões que põem fim a existência de pessoas, culturas, povos e ecossistemas. Somente com esse pano de fundo o anúncio da vida recobra a sua autenticidade e importância, enchendo-se de significado e sentido.
Na Amazônia, não há pessoas mais autorizadas a falar sobre a vida do que aquelas que anseiam por viver dignamente, longe das agressões e humilhações estruturais. A palavra deve ser franqueada às populações indígenas, ribeirinhas, quilombolas e tantas outras minorias que sonham em ter vida digna nas florestas, nas cidades e nos campos. Este anseio pela vida não pode ser compreendido sem que observemos a labuta diária nas periferias de nossas cidades, enfrentando a falta de saneamento básico e de transporte de qualidade, a ausência de políticas sanitárias, a moradia precária e o descaso para com a educação.
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostra em novo relatório sobre os conflitos no campo (36ª Edição) que a vida é cada vez mais atacada no Brasil. Em assustadora escalada, o documento registra em 2021 um total de 35 assassinatos, sendo que 80% deles ocorreram na Amazônia Legal. Nos casos de violência contra a ocupação e a posse, os assassinatos de sem-terras e mortes dispararam em 2021. Os dados que compõem a Amazônia Legal concentraram 77,9% das famílias afetadas pelo desmatamento ilegal; 87,2% das famílias afetadas por expulsão; 81,3% das famílias afetadas por grilagem; e 82,2% das famílias afetas por invasões.
O documento também reúne ocorrências relacionadas a disputas por terra na Amazônia Legal onde foram registradas 641 ocorrências, o que representa 49,49% dos conflitos no Brasil. No mesmo período, foram identificados 142 conflitos relacionados à água (40,78%) e 54 casos de trabalho escravo (31,95%). A mineração e o agronegócio foram apontados como um dos principais responsáveis pelas ocorrências.
O garimpo ilegal e o desmatamento têm avançado assustadoramente nos últimos anos, principalmente durante o governo Bolsonaro. Com um aumento de quase 500% na última década, o garimpo ilegal ostenta o desprezo pela natureza e pela vida, recebendo incentivo especial desde 2019. Junto com o avanço do garimpo há também o aumento da devastação das florestas. São 69 milhões de hectares nos últimos 30 anos. São práticas de atentado à vida que colidem frontalmente com a mensagem da Páscoa.
A forma como a pandemia da Covid-19 foi conduzida no Brasil também representa uma agressão à vida, atropelando qualquer sentido de solidariedade. A morte de 662 mil brasileiros decorrente da irresponsabilidade do poder público é inaceitável em qualquer civilização. O negacionismo, o incentivo ao uso de medicamentos sem eficácia, a corrupção comprovada, o desdém às medidas de isolamento e o desrespeito aos mortos são práticas perversas que causam repulsas e tristeza nas mais diversas sensibilidades. Trata-se de um ataque à vida que se choca com o significado da Páscoa.
Após um período em que o Brasil conseguiu sair do Mapa da Fome, mais de 20 milhões de brasileiros voltaram a passar fome nos últimos anos. Segundo pesquisa realizada em 2021 (Rede PASSAN), 116,8 milhões de brasileiros não tinham acesso pleno e permanente a alimentos. Desses, 43,4 milhões (20,5% da população) não contavam com alimentos em quantidade suficiente e 19,1 milhões (9% da população) estavam passando fome. Além disso, as condições econômicas do país, a redução da renda da população e o desemprego dobraram o número de favelas no Brasil, nos últimos 10 anos.
Considerar essas situações contribui na compreensão da festa da Páscoa, na medida em que ela nos leva a pensar no grande desejo de vida que existe no ser humano. A Páscoa mostra que esta aspiração pela vida pode ser concretizada pelo ser humano, convidando a todos e todas a se empenharem na construção de uma sociedade mais justa, fraterna e sustentável, onde as ideologias, práticas e políticas que produzem morte e violência contra a vida sejam erradicadas.
Não é necessário sermos muito atentos para percebermos quem tem atuado contra a vida social, ambiental e cultural no Brasil. Quem tem implantado ou apoiado políticas que prejudicam as populações mais pobres e deixando a maioria da população sujeita às situações de vulnerabilidade. As próximas eleições serão uma ótima oportunidade para demonstrarmos se levamos a sério o significado da Páscoa ou vamos continuar reproduzindo ou apoiando práticas de morte e violência contra a Amazônia e seus povos.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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