Uma ideologia mistificadora do papel das polícias na segurança pública é a de que “polícia é polícia, e ponto final”, como se as polícias fossem uma coisa só ou a mesma coisa, desconsiderando as características de cada uma: atribuições legais, funções técnicas, especificidades operacionais.
Essa concepção é inteiramente equivocada e obscurece a questão sobre o papel das polícias quando o assunto é combate à violência, à criminalidade e à insegurança pública. Ao invés de esclarecer acaba por confundir e alienar os cidadãos sobre a função dos órgãos do sistema de segurança pública. É uma questão de cidadania desmontar a mistificação forjada por essa ideologia de que “polícia é polícia e ponto final”.
Primeiro porque esse modo simplista de ver as polícias é abusivamente generalista e esvaziado. A atuação integrada das polícias não pode levar à confusão quanto às atribuições legais das mesmas. Cada polícia cumpre um papel constitucionalmente definido e responde nos termos de leis infraconstitucionais por ele. Não levar isso em conta viola a legalidade do próprio sistema de segurança pública.
Segundo, o que uma polícia faz não pode ser absorvido pela outra. A Polícia Civil investiga a materialidade e autoria dos delitos, exercendo função de polícia judiciária. A Polícia Militar preserva a ordem pública atuando ostensiva e preventivamente. A PC não pode fazer o que faz a PM e vice-versa. A não observância disso fragilizaria o processo judicial e inviabiliza a eficácia no sistema de justiça criminal.
Terceiro, uma concepção equivocada como essa de que “polícia é polícia e ponto final” desfigura as funções do Estado, inclusive criando dificuldade para que este trace indicadores precisos de desempenho na área de segurança em suas políticas públicas.
Quarto, confundir e misturar as atribuições entre as distintas polícias do sistema de órgãos de segurança vigente no país, tem acarretado na sobrecarga apenas de uma função – a repressiva –, desviando-se e esvaziando-se a outra – a função preventiva, que é a mais essencial à segurança pública. Infelizmente, quase ninguém na gestão pública examina esse fenômeno de modo mais atento. É flagrante a escassez de estadistas ou, ao menos, de quadros técnicos que conheçam um pouco melhor das funções e da estrutura estatal, de modo a serem coerente com esse conhecimento quando da adoção de atos administrativos. Na maior parte das vezes, muito embora conheçam da organização do Estado, os gestores dos entes federados fazem vista grossa sobre essa questão, transacionando o inegociável interesse público, pois a mentalidade desses gestores ainda é muito centrada no obsoleto modelo ultra-repressivo “poder-polícia-presídio”.
Quinto, ao lado da ineficaz rede de serviços de assistência aos vulneráveis socialmente, o descaso com a função de prevenir a prática delituosa por parte da atuação da polícia ostensiva, constitucionalmente atribuída à Polícia Militar, é algo que tem levado ao crescente aumento das taxas de criminalidade, da sensação de insegurança e ao amplo questionamento da militarização da polícia ostensiva, pois ela não tem apresentado resultados efetivos em termos de segurança pública. Pelo contrário, as polícias militares em todo o país tem se lançado, cada vez mais, numa equivocada cruzada repressiva, deformando sensivelmente sua atribuição constitucional. Ao invés de atuar de forma preventiva, polícias militares tem buscado equiparar-se empiricamente a atribuições que não são as suas – geralmente para justificar extensões de benefícios salariais e funcionais além dos que já possui –, mas que são as da polícia judiciária, polícia civil nos estados. A polícia civil, esta sim, é encarregada de investigar a materialidade e a autoria dos delitos, prestar serviços de inteligência e outros encargos que lhe atribui a Constituição Federal.
Em face dessas razões expostas, a suposta unificação das polícias, longe de representar qualquer perspectiva de solução, tende mesmo a agravar o quadro de confusão institucional, ineficiência operacional e ineficácia de resultados em termos de segurança pública. É potencializar a mistificação de que o problema da violência e da insegurança pública é tão somente uma questão de polícia. A retrógrada ideologia de que praticamente tudo é problema de polícia ao ponto de se propagar num novo modismo mistificador: a unificação das polícias.
Por fim, em que pese a polícia investigativa ainda permanecer estranhamente subordinada ao poder executivo, ao qual ela deveria cuidadosamente investigar e não somente dar guarida, necessita de urgente autonomia administrativa, dotação orçamentária própria, valorização profissional e aparelhamento tecnológico, em especial para alcançar melhores resultados no serviço de inteligência, condições essas perceptíveis apenas pelas consciências que não caem no equivocado conto de que “polícia é polícia, uma coisa só, e ponto final”.
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