Fator indispensável para compreender os indicadores de violência e de criminalidade, inclusive da tendência ao encarceramento, é a expansão da cultura do entorpecimento ou a cultura das drogas.
As drogas não se limitam ao aspecto químico. Há a droga simbólica, a droga como arte, a droga política, a droga eleitoral, a droga comportamental, a droga institucional. A droga química, em regra, é a última fase do processo que leva à drogadição.
A cultura do entorpecimento impacta nocivamente a família, as relações e as instituições sociais. Afeta a segurança pública e a qualidade de vida com eventos de violência e de criminalidade. A cultura das drogas abre espaço para a economia do crime, para o golpismo político, para abusos e espoliações que violam a dignidade humana, para ditaduras e tiranias. O entorpecimento precariza o discernimento lúcido e a cognição. A cultura dos vícios corrompe aonde quer que alcance, seja na esfera pública seja na privada.
Além dos danos à saúde individual e coletiva, a cultura das drogas impacta nocivamente a educação, o trabalho e a convivência em geral. A cultura do entorpecimento vai aniquilando o discernimento lúcido e a própria cognição humana. Gradualmente, perde-se o domínio sobre si mesmo, escravizando-se no objeto do vício, agindo-se apenas para satisfazer a dependência. Uma vez dependente, o viciado pouco se importa de fazer parte da economia do crime: pratica-se a violência, o furto, o roubo, a prostituição, o tráfico, o latrocínio, o homicídio. Da parte dos traficantes, pouco conta a exploração física, econômica, cultural e política. O foco é lucrar com o vício ou a dependência dos outros.
Enquanto se discute a descriminalização de certas drogas, a cultura do entorpecimento vai se alastrando e, com ela, a violência e o crime, movimentando uma robusta economia ilícita operada por organizações criminosas, cujo combate apenas pelo viés repressivo, o modelo da “guerra contra as drogas”, não tem surtido efeito. Tem-se ampliado o número de encarcerados e de mortos, além do imenso ônus à sociedade, já no limite com os gastos do modelo repressivo, contudo, os resultados do sistema de justiça tem sido pífios e as ocorrências só aumentam. Sem combater os fatores do crime e da cultura das drogas não há como alcançar segurança pública. É como buscar fins sem os devidos meios, uma coisa de imaturos ou despreparados, mesmo com a radicalização do modelo repressivo via intervenção com emprego das forças armadas.
Tanto quanto combater os varejistas e pequenos distribuidores, é essencial enfrentar os grandes produtores e distribuidores, que são os efetivos empreendedores do tráfico ilícito e movimentam a megaeconomia do crime. Por outro lado, já passa do tempo de buscar alternativas mais eficazes, que ocupem os potencialmente recrutáveis pela economia do ilícito e os eduque, assista e prepare para viver na sociedade de mercado e de consumo em que se inserem. Um modelo interessante foi a bem sucedida campanha publicitária e ações institucionais contra o cigarro. É certo que levou vários anos, mas foram meios eficientes ao revelar a associação que há entre o consumo de cigarros e várias graves doenças, a baixa-autoestima e o prejuízo à imagem pessoal. Os resultados dessas ações e campanhas contra o tabagismo e o cigarro foram positivos sem que se tenha movido uma guerra armada.
A cultura das drogas fomenta não apenas a violência do cotidiano e das organizações criminosas, como também a violência sistêmica e naturalizada, articulada à corrupção institucionalizada. Amplamente capilarizado no tecido social, o processo de viciamento humano em curso opera em diferentes redes lícitas e ilícitas. Tal processo, em grande medida, é responsável por degenerar instituições políticas e processos econômicos, alastrando práticas viciadas, violentas e corrompidas por todas as esferas sociais e oficiais, comprometendo a qualidade do ambiente social em que se tece a vida coletiva.
A economia do entorpecimento humano causa gravíssimos danos a crianças, adolescentes e os jovens, vitimados anualmente aos milhões não apenas enquanto viciados, como também por conta de violentas disputas por mercado e território de drogas entre facções, no necessário combate ao crime de tráfico de drogas pelas forças policiais e na desfiguração humana de sistemas penitenciários. Os “empresários” do vício não se importam com as perdas humanas, familiares ou sociais. O único alvo é tão somente obter lucro ou vantagens a qualquer custo. A moral “dos fins justificam o meios” é a filosofia da economia do crime. Não é à toa que o ilícito esteja tão presente nas instituições de medição política. Fazem parte da cultura das drogas.
A violência e a cultura das drogas não teriam alcançado uma dimensão sistêmica se não operasse em seu favor dela a informação manipulada e reproduzida em diferentes redes de comunicação. O processo de entorpecimento humano decorre também de um processo induzido por pensamentos fomentados por informações contextuais, relacionais, publicitárias, formatada de acordo com os diferentes perfis socioculturais. A informação está no “DNA” da cultura das drogas e do entorpecimento humano, uma vez que o pensamento induzido serve de base à materialização do vício. A vontade compulsiva de consumir, jogar, fumar, beber, corromper, enganar ou prejudicar, fazer sexo, levar vantagem a qualquer custo, falar mal dos outros, agir com violência, dar vazão ao fanatismo ou fundamentalismo extremista, dentre outras, tem origem no pensamento induzido por certas informações, sobretudo de natureza obscurantista.
Em face do cenário atual, sem precedentes quanto à violência associada à cultura das drogas lícitas e ilícitas, é necessário considerar a possibilidade de intervir não somente de modo repressivo, mas também com programas e ações de ocupação e de educação integral, de assistência social, de esclarecimento e planejamento público, de tratamento médico etc. É imprescindível que, ao lado das ações e intervenções repressivas e encarceradoras, proceda-se ao trabalho preventivo de educação de crianças, adolescentes, jovens adultos e famílias com vistas a desacelerar e, se possível, conter o rápido processo de entorpecimento sistêmico, principalmente com vistas a evitar a drogadição, a corrupção, a delinquência e os eventos epidêmicos de violência e de criminalidade.
Pontes Filho – Doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia. Mestre em Direito Ambiental. Graduado em Ciências Sociais e em Direito. Servidor público estadual. Docente da UFAM.
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Parabéns pela abordagem com ênfase cultural sobre as drogas. Somente alguém com uma visão ampla e com domínio de um vocabulário rico seria capaz de fazê-lo com esta qualidade.
Ótimo artigo! Se investissem melhor na Educação, nas escolas e na família como célula-mater da sociedade, não teríamos tantas crianças e adolescentes envolvidas e seguindo modelos criminosos. O trabalho preventivo e de qualidade mudaria nosso cenário.