Um menino marcou um gol. Não se sabe se foi bonito ou se era gol de desempate de um jogo difícil. Só se sabe que ele ficou muito contente. E achou que tinha o direito de comemorar.
O chão de terra batida do campinho não podia conter sua alegria e ele pulou como se quisesse voar. Um “Ícaro” desafiando a lei da gravidade. Seu salto foi tão alto que ele alcançou o travessão. Era uma sensação tão boa que ele queria que durasse. Assim, ele tentou segurar toda aquela alegria agarrando com força o travessão.
A estrutura, em estado precário, porém, não resistiu ao impulso travesso do garoto, quebrou-se, virou e caiu atingindo com impacto a cabeça do pequeno. Feito passarinho ferido numa arapuca, o menino morreu.
Luiz Kennedy de Souza Pantoja, de 7 anos, morreu no início do mês (2) porque comemorou um gol em uma trave deteriorada em um campinho de futebol na Rua Parque dos Franceses, no Conjunto Aristocrático, bairro Chapada, na Zona Centro-Sul de Manaus.
Era velório do amigo, o jornalista Paulo Ricardo Oliveira, no sábado (8), e por algum motivo pensava também no menino que nunca será chamado de rapaz, senhor Luiz nem velho Pantoja. Talvez porque ambos foram abruptamente impedidos de vivenciar muitas coisas e de marcar ainda tantos “gols”. No caso de Paulo, a maldita “trave” foi o câncer.
Seria a tragédia do travessão a mais realista metáfora da nossa existência? Aquilo que nos dá prazer pode também ser o motivo de uma desgraça? Toda felicidade sempre será interrompida? Todo riso será cessado por um “entrave”? Breves e fugazes instantes de contentamento encerrados por uma “paulada” fatal na cabeça?
A morte do pequeno Luizinho é um alerta. Somos o país da falta de cuidado e de manutenção. Da viatura policial no prego. Do sistema informatizado que sempre dá pau. Do esgoto ao céu aberto. Do lixo jogado na rua. Do chão empoeirado, do teto cheio de goteira. Do equipamento médico quebrado. Da estrada esburacada. Do parquinho com o brinquedo solto. Da merenda escolar com alimento estragado. Do remédio com validade vencida.
Somos o país do “entrave”. O que aceita participar de um “jogo” com traves enferrujadas e carcomidas. Em que a celebração incontida é perigosa. Onde toda alegria parece ser uma ingenuidade imperdoável.
Aceitamos juros altos, mau humor, gritos, o “rouba mas faz”, o “rouba mas diz que gosta de pobre”, os atalhos, as leis que não pegam; o “dinheiro do guaraná”; as gambiarras.
Não bastasse tudo o que nossos representantes políticos expõem, a morte de Luizinho é um aviso que não pode mais ser ignorado. Tanta convivência e aceitação com o apodrecimento cobra sempre um preço alto e mortal.
Travessão não é apenas a designação do limite superior do gol. Também é um sinal de pontuação utilizado para indicar o início de frases ou interlocuções. Travessão foi criado para sinalizar um começo, não um fim.
De todas as frases inventadas para o futebol, a mais poética foi criada por antigos locutores de rádio para descrever o movimento da bola em um quase-gol: “passou tirando tinta da trave”.
Uma certeira expressão para retratar uma grande chance desperdiçada. E também para representar um alvo quase alcançado; uma oportunidade que passou de raspão; a frase que deveria ser dita mas não foi proferida; a ação que deveria ter sido feita mas não foi concretizada.
Um insistente lembrete que para ser plena não basta uma vida que passa “tirando tinta da trave”.
Emocionante texto, Enock. A tragédia que nos ronda e não poupa ninguém.