Por Felipe Campinas, da Redação
MANAUS – Em 36 páginas, o relator da CPI da Covid do Senado, Renan Calheiros (MDB), culpa o governo federal e dispensa as autoridades amazonenses das responsabilidades pelo colapso no sistema de Saúde do Amazonas em janeiro deste ano. O relatório da comissão, com 1.180 páginas, foi apresentado aos membros da comissão nesta quarta-feira (20).
No documento, o relator pediu o indiciamento de 68 pessoas e empresas. Nenhuma autoridade amazonense entrou na lista, apesar de o relator apontar, na parte que trata da crise de oxigênio em Manaus, que houve “conduta omissiva por parte dos gestores estaduais” em relação ao monitoramento de insumos médicos nos hospitais.
“O aterrador número de vítimas e de sobreviventes que carregarão sequelas da doença sempre estará presente nas vidas dos brasileiros que moram no Amazonas. Há associação clara entre as omissões e condutas de autoridades estaduais e, sobretudo, federais com os fatos que culminaram nos horrores do início do ano de 2021”, disse Calheiros.
Sobre a crise no Amazonas, Renan pediu o indiciamento do presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido), do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e da secretária do Ministério da Saúde Mayra Pinheiro. Também pediu o indiciamento do médico Flávio Adsuara Cadegiani por “experimentos irregulares” em Manaus.
O capítulo do relatório sobre a pandemia no Amazonas foi intitulado “Crise do Estado do Amazonas e a falta de coordenação do governo federal”. Ele tem sete subtítulos que tratam sobre fatos que antecederam o colapso na Saúde, a crise da falta de oxigênio, transferência de pacientes, tratamento precoce e déficit de coordenação por parte do governo federal.
Em um dos subtítulos, intitulado “a responsabilidade do governo do Amazonas por atos relacionados ao enfrentamento da pandemia”, Calheiros cita a denúncia da PGR (Procuradoria-Geral da República) contra o governador Wilson Lima (PSC) para justificar o não aprofundamento das investigações sobre o enfrentamento da pandemia no Amazonas.
“Como se verifica, portanto, as condutas relatadas receberam a devida atenção dos órgãos de persecução penal e os possíveis infratores já estão sendo processados. Na linha dos trabalhos realizados por esta CPI, nossa expectativa é que, comprovada a ocorrência de crime, sejam os respectivos agentes devidamente responsabilizados”, escreveu Calheiros.
Proxalutamida
Ao pedir o indiciamento de Flávio Adsuara Cadegiani, Renan afirmou que o médico cometeu “graves falhas” na pesquisa relativa à utilização do medicamento proxalutamida para o tratamento da Covid-19, em Manaus. Segundo Calheiros, a pesquisa era pra ter sido feita em Brasília, não na capital amazonense.
“Além de alterar o local do estudo (era para ter sido feito em Brasília) e o número de participantes autorizados pela Conep, não apresentou os termos de consentimento livre e esclarecido (TCLE) dos pacientes e incluiu pacientes graves, o que não fazia parte do pedido de autorização original, entre outras irregularidades”, afirmou Calheiros.
“Mais grave que isso é o fato de que, em um estudo autorizado para 294 pacientes voluntários, que teve o espaço amostral indevidamente ampliado para 645 pacientes no Amazonas, houve 200 mortes, número que representa alto índice de eventos adversos graves”, completou o senador.
Para o relator, o alto número de mortos, junto com a falta de análise crítica que permita conhecer a causa mortis, sugere que as mortes possam ter sido causadas por toxicidade medicamentosa ou pelos procedimentos da pesquisa. No entanto, ainda assim o pesquisador não interrompeu a intervenção voluntariamente.
Calheiros afirmou que os amazonenses foram tratados como cobaias. “Mais uma vez aqui vemos seres humanos tratados como cobaias, e, mesmo assim, também esse medicamento foi defendido publicamente pelo Presidente Jair Bolsonaro como parte do tratamento precoce da covid-19, de forma açodada e temerária”, disse o senador.
Influência
Renan disse que as autoridades amazonenses tiveram conhecimento do aumento de casos de Covid-19 no final de dezembro e, por isso, o governador do Amazonas editou o Decreto Estadual nº 43.234, de 23 de dezembro de 2020, que estabeleceu medidas restritivas no período de festividades e a abertura de novos leitos de UTI.
Entretanto, segundo o relator, o governador do Amazonas decidiu revogar o decreto após manifestações de trabalhadores do comércio. Para Calheiros, o “recuo do governo estadual foi incentivado e motivo de celebração por personalidades públicas notoriamente alinhadas ao governo federal” e que são contra as medidas restritivas de combate à pandemia.
Colapso
Renan afirmou que o governo federal teve conhecimento da possibilidade de colapso no sistema de saúde do Amazonas em dezembro de 2020. Segundo ele, as investigações da comissão apontam que Manaus foi tema de uma reunião entre o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e seu secretariado no dia 28 de dezembro.
De acordo com o relator, em depoimento ao MPF (Ministério Público Federal), o então secretário do Ministério da Saúde Luiz Otávio Franco Duarte confirmou que o foco daquela reunião foi a “preocupante curva de contágio em Manaus”. Conforme Calheiros, a pasta também tinha acesso aos dados sobre a pandemia no Amazonas através do Datasus.
O relator disse que o Ministério da Saúde enviou uma equipe o Amazonas apenas no dia 3 de janeiro de 2021, na semana que houve duplicação de internações. Segundo ele, a comitiva tinha apenas o objetivo de avaliar uma situação que já se mostrava grave, mas não há evidências de que o grupo tenha executado medidas que mitigassem o “previsível colapso”.
Para Renan, a demora de quase uma semana para envio de comitiva do Ministério a Manaus “não deve ser creditada à mudança na gestão municipal, pois “as unidades hospitalares carentes de medidas que eventualmente respondessem ao agravamento da pandemia estão sob administração do Governo do Estado ou do próprio governo federal”.
Calheiros afirmou que o então secretário de Saúde do Amazonas, Marcellus Campêlo, enviou ofício ao Ministério da Saúde no dia 30 de dezembro de 2020 solicitando o envio da Força Nacional do SUS para auxílio no monitoramento e orientação técnica. Para o relator, esse pedido é “evidência do esgotamento da capacidade do Estado em responder à crise”.
No dia 4 de janeiro, após reunião da comitiva do Ministério da Saúde com as autoridades estaduais e locais, os gestores concluíram que havia “possibilidade iminente de colapso do sistema de saúde, em 10 dias, devido à falta de recursos humanos para o funcionamento dos novos leitos”.
Para Calheiros, a ausência de monitoramento e de planejamento acerca do fornecimento de insumos hospitalares, sobretudo o abastecimento de oxigênio medicinal, levou a uma grave crise humanitária no estado. “Nas primeiras oito semanas de 2021, pelo menos 113.732 casos e 5.506 óbitos ocorreram no Amazonas em decorrência da covid-19”, disse o relator.
Crise de oxigênio
Sobre a crise da falta de oxigênio em Manaus, Calheiros afirmou que “além de se verificar uma conduta omissiva por parte dos gestores estaduais, deve-se considerar que o governo federal não adotou, previamente, mecanismo de controle do consumo de oxigênio pelo País, apesar de o produto ser estratégico na terapia de pacientes infectados pela covid-19”.
De acordo com o relator, a “falta de uma coordenação nacional para o monitoramento do consumo e da oferta do insumo resultou na corrida pelo produto não só em Manaus”. “Após a disseminação da ‘segunda onda’ pelo país, várias unidades da Federação enfrentaram carência de oxigênio medicinal”, disse o senador.
“Não houve, por parte do Ministério, conduta que viesse a mitigar os riscos decorrentes de um aumento exponencial da demanda por oxigênio medicinal. A omissão ocorreu mesmo em vista de indicativos que apontavam para um recrudescimento da pandemia e da existência de conhecidas dificuldades logísticas para suprimento do insumo”, afirmou Calheiros.
Em outro trecho do relatório, o senador afirma que o Ministério da Saúde não se preocupou em “dimensionar a demanda de oxigênio medicinal no Amazonas, ainda que o Ministério já se encontrasse imbuído da ideia de avaliar a situação da pandemia, no Estado, pelo menos desde 28 de dezembro de 2020”.
Calheiros concluiu que “nos acontecimentos do início de 2021, verifica-se uma atuação às cegas e pouco proativa por parte dos gestores federais”. Segundo ele, a legislação prevê que, “na falta de capacidade técnica para enfrentar a crise, cabe à União promover a devida orientação”.
“A atuação do governo federal mostrou-se exclusivamente reativa, sem qualquer planejamento. Além de fragilidades e omissões locais, que fogem à competência desta CPI do Senado Federal, a crise de Manaus aponta para déficit de governança e de coordenação no governo federal para combater a pandemia”, concluiu o senador.
Sobre as transferências de pacientes, Calheiros disse que “a falta de planejamento para a operação resultou em um lento processo de transferências de pacientes”. Segundo ele, em 15 e 16 de janeiro, apenas 47 pessoas acometidas pela Covid-19 haviam sido removidas para outros estados, apesar do mapeamento de 117 leitos disponíveis no País.
Tratamento precoce
O relator da CPI da Covid afirmou que o Ministério da Saúde, ao testar a eficácia do chamado ‘tratamento precoce’ em pacientes amazonenses, “fez do estado do Amazonas um verdadeiro laboratório humano, colocando a saúde em segundo plano e atentando, assim, contra a vida e a integridade física dos amazonenses”.
Calheiros afirmou que, em reunião realizada no dia 6 de janeiro, ao invés de centrar esforços na avaliação e no monitoramento dos equipamentos e insumos necessários ao enfrentamento da pandemia, o grupo do Ministério da Saúde preferiu “discutir o fortalecimento da atenção primária no Amazonas”.
“A comitiva federal, coordenada pela Secretária Mayra Pinheiro, preferiu orientar a disseminação, nas unidades básicas de saúde de Manaus, do protocolo clínico com medicamentos para tratamento precoce”, disse Renan, ao citar um ofício enviado por Mayra Pinheiro à Secretaria de Saúde de Manaus no dia 11 de janeiro.
De acordo com Renan, no documento ‘Plano de Contingência – Apoio ao Enfrentamento
covid-19 no Estado do Amazonas’, a Força Nacional do SUS listou, como ação estratégica implementada por ocasião da crise em Manaus, o envio de 120.000 comprimidos de hidroxicloroquina – remédio sem eficácia comprovada contra a Covid-19.
Para ele, o “fornecimento e a propaganda desmedida de remédios com ineficácia comprovada por integrantes do governo federal – sob o argumento da autonomia médica – resultou na adoção de experimentos clandestinos, como a nebulização de hidroxicloroquina em pacientes com coronavírus”.
“Se, por um lado, observa-se que o governo federal se omitiu no monitoramento e na busca por soluções concretas e tempestivas à crise humanitária que se instaurou em Manaus, por outro lado, patrocinou e induziu ativamente a prescrição de medicamentos com ineficácia comprovada em um momento de agudização da crise”, afirmou Calheiros.