O país e o mundo estão perplexos e apavorados com a chacina ocorrida em unidades prisionais amazonenses, no primeiro dia do ano de 2017. Suas reais causas ou fatores de deflagração não são de agora nem mesmo recentes. Há algum tempo já foram apontados, apresentados, comunicados e até mesmo denunciados. Não foi por falta de aviso nem de visão, mas, sobretudo, por conta da ausência de adoção de medidas imprescindíveis (tal como a ressocialização) para evitar que se produzisse a mais trágica chacina que já ocorreu no sistema prisional brasileiro depois do massacre do Carandiru.
Há anos o Copen-AM (Conselho Penitenciário do Amazonas) vem apontando a existência de certos riscos em unidades prisionais, ausência de programas de ressocialização aos internos, expondo casos e situações, bem como apresentando projetos para lidar com a disponibilidade de tempo mal empregada pelos internos. Buscou dialogar, apresentou projetos e cartas interinstitucionais ao judiciário, resultantes de eventos e fóruns sobre o assunto. Não foram poucas as reuniões, workshops, audiências públicas e seminários realizados para mobilizar as instituições com relação às problemáticas do sistema prisional estadual. O Copen-AM chegou a remeter relatórios à própria casa civil estadual, todavia, nenhuma das medidas propostas seguiu-se a essa “romaria” às instituições. Notou-se lamentavelmente a recalcitrante persistência no velho modelo de encarceramento em massa, mediado pela terceirização de unidades prisionais, cujas empresas apenas ampliaram os significativos lucros com essa ordem de coisas.
A caótica situação dos cárceres do país não é de hoje e todos sabemos disso. Essa falência do modelo de execução penal, em todo o país, é denunciada antes mesmo do nefasto episódio do Carandiru (1992). Ninguém desconhece essa realidade, mas paradoxalmente não se adotam efetivas medidas e providências sistêmicas que venham a lidar adequadamente com toda essa situação, principalmente no que se refere à ressocialização dos internos e à desarticulação de facções criminosas no interior das unidades prisionais.
Embora existam muitos discursos precoces condenando e criticando estratégias de ressocialização ou ressignificação nos presídios, considerando-a uma missão impossível, efetivamente nunca se implementou uma política sistêmica e integral para ressocializar os internos do sistema prisional. Não há sequer indicadores que se possa levar em conta e medir a eficácia de tais medidas ressocializadoras. Mesmo assim, sem nunca terem sido adotadas nem existirem parâmetros para avaliá-las, muitos se apressam em desmerecê-las e desqualificá-las, muitas vezes tratando-as como utópicas, todavia, sem se importar com as centenas de milhões gastos com modelos de terceirização de presídios que não apresentam resultados mínimos nem evitam o pior no interior dos cárceres. Pelo contrário, legitimam um processo que conduz a uma maior insegurança, violência e criminalidade. Isso evidencia, por outro lado, que a ressocialização de encarcerados não é mera questão para leigos, amadores nem se resolve apenas com boa vontade, apesar desta ser necessária em tudo o que se deva fazer. A ressocialização é uma medida complexa e requer uma abordagem multidisciplinar.
Embora se possa classificar alguns como irrecuperáveis, tende-se na maior parte das vezes a estigmatizar quase todos como incorrigíveis ou impossíveis de reabilitação individual e social. Ainda mais levando em conta o domínio de presídios por facções criminosas e as precárias condições do sistema prisional vigente no país. Nesse cenário, falar em ressocialização de presos torna-se algo polêmico quando não é desde logo tratado como mero idealismo ou devaneio.
A ressocialização não é um processo de curtíssimo prazo nem imune às influências do meio. O que é necessário fazer para ressocializar presos? Como estamos socializando as pessoas aqui fora? O que crianças, adolescentes e jovens estão aprendendo no cotidiano? Em seguida, considerando essas questões, poderemos abordar o problema da ressocialização de internos do sistema prisional.
Apesar de polêmica, a ideia de ressocialização suscita muitas questões relevantes. A primeira delas é a necessidade de levar em conta o meio ou o contexto sociocultural no qual se pretende inserir o indivíduo ou grupo em processo de ressocialização. Não é possível socializar ou ressocializar alguém num contexto cultural ou ambiental abstrato. Quais as condutas, os valores e as formas de proceder requeridas do indivíduo para conviver em nossa sociedade?
Somos todos de algum modo socializados, seja num ambiente de licitude, paz e cidadania seja noutro contexto em que predomina a cultura da “esperteza”, de violência e de criminalidade. Inexiste quem não tenha sido socializado pelo meio social em que vive, pois é nele que aprendemos a falar, a raciocinar, a andar e valorar o mundo, os seres e as coisas, inclusive a vida humana. É no ambiente cultural no qual somos formados que aprendemos a significar as coisas. A sociedade molda o indivíduo tanto quanto este interage para dinamizar a cultura e a sociedade na qual convive.
Como nos expressaríamos caso tivéssemos nascido e sido formados numa comunidade ou grupo indígena? Ou se criados entre grupos africanos? Ou lançados em presídios dominados por facções criminosas? Guardadas as exceções, estaríamos sujeitados à socialização dessas sociedades. Uma vez internalizado os padrões culturais e seus valores e sistema de crenças, o indivíduo ou o grupo é socializado. Isso repercute nas inclinações individuais e coletivas. Desse modo, é-se moldado culturalmente pelo ambiente no qual convivemos. Isso se chama socialização. No ambiente prisional não é diferente. Se nada for realizado em sentido contrário, não há como evitar o aprofundamento da socialização dos presos numa cultura de viciamento, de violência e de criminalidade.
Por isso é socialmente relevante o esforço de buscar meios e processos de ressocialização humana a partir dos cárceres, ou seja, reabilitar pessoas para o convívio social na sociedade em que serão reinseridos. Os encarcerados não estão isolados ou apartados da vida social, ainda mais no contexto da sociedade de tecnologia da informação. Não é mais possível fazer de conta que a sociedade nada tem a ver com a ressocialização de seus encarcerados. Não fazer o suficiente para promover a ressocialização de presos e apostar tão somente no “depósito de gente descartável” ou na assepsia social dos mesmos é mergulhar a sociedade nas conseqüências mais sombrias e violentas da modernidade líquida, denunciada por Zygmunt Bauman. É ir armando o rastilho de pólvora nas prisões até explodam em massacres, matanças e episódios de efeitos tão graves e trágicos no lugar social dos cárceres.
Como lidar com a difícil realidade dos presídios? Quais os métodos e processos adequados voltados à ressocialização dos presos, sobretudo para uma cultura de licitude e cidadania? O que fazer, afinal, com os encarcerados?
A resposta a tais questões dependem das escolhas feitas pelos gestores da própria sociedade, empoderados no Estado e seus poderes. Devem optar pelo atual modelo sem eficácia nem perspectiva de segurança pública ou buscar universalizar as condições para socializar as pessoas (crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos) para uma cultura de licitude, de justiça e de liberdade, em síntese, uma cultura de cidadania e de paz. Trata-se de atuar de modo a contribuir para formar pessoas capazes de conviver e reproduzir a cultura de respeito à dignidade humana.
O descaso para com a ressocialização de pessoas encarceradas é um perigoso retrocesso civilizatório. A perdurar a omissão frente à expansão da cultura criminógena em todos os segmentos sociais, cujas expressões mais extremas dão-se na corrupção dos poderes estatais e no interior de presídios e delegacias, opera-se contra a própria ordem pública, contra a estabilidade social e das instituições que compõe o Estado. Com isso, reproduz-se a violência e a criminalidade reeditadas em crises cíclicas de insegurança pública, inclusive a partir dos cárceres.
Um dos maiores problemas do sistema prisional do país, ao lado da superlotação e das precárias condições dos estabelecimentos penais, é a ociosidade viciante que reforça a cultura do crime nos presídios e unidades de privação de liberdade. Convertem-se esses espaços em meros depósitos de gente, que aguardam o descarte final. Daí a insegurança máxima das prisões, as violentas nas cadeias, os motins, as rebeliões, os massacres, as incessantes tentativas de fuga, a violência que se radicaliza e transborda, alcançando a sociedade.
Como transformar os estabelecimentos penais em espaços decentes de privação de liberdade? Como ocupar beneficamente o preso no interior do cárcere de modo a dificultar e evitar a reprodução da cultura criminógena? De que maneira a prisão pode cumprir minimamente sua função ressocializadora e funcionar em favor da sociedade, que arca com os onerosos encargos de sua manutenção?
É fundamental retomar a perspectiva ressocializadora da privação de liberdade. O processo de ressocialização requer a aprendizagem de novos padrões valorativos e a resignificação da experiência de vida de cada prisioneiro ao ponto de oportunizá-los uma outra visão de mundo, hábitos, práticas e de atitudes. É preciso atuar no sentido de promover a saúde mental e emocional para convivência social dos apenados ou internos do sistema prisional. É necessário que a ressocialização colabore para renovar a mente e o comportamento dos encarcerados. A ressocialização de presos é, por isso, o mais desafiador projeto de reabilitação humana, todavia não mais oneroso, e requer compromisso e qualificação à altura, não bastando apenas boa disposição.
Diversos segmentos organizados, grupos de profissionais e algumas autoridades já defendem a conversão dos espaços de encarceramento em unidades de educação e de saúde integral, estendidos tanto a presos condenados quanto a provisórios, sobretudo considerando a dramática realidade prisional brasileira. O caro e superlotado sistema penitenciário em vigor não pode continuar se limitando a manter centenas de milhares de indivíduos depositados ociosamente, operando em desfavor da segurança pública e impondo enormes custos à sociedade. Um sistema carcerário que paga caro para fazer com que a maior parte dos internos se torne ainda mais perigosa, capaz de causar maiores danos à sociedade, apenas reproduza o ciclo da reincidência na prática da violência e da criminalidade.
A educação e a saúde no cárcere são também instrumentos de ressocialização do preso, tendo em vista a convivência social livre, lícita e segura. Injustificável é negar a possibilidade ressocialização humana sem que nada tenha sido feito efetivamente nesse sentido, vivendo apenas da imposição do viciado modelo “poder-polícia-prisão”. É imprescindível que se dê início a algo de concreto, sobretudo a ações que sejam objetivamente mensuráveis, com vistas à ressocialização de presos. Sem isso é impraticável a formação de indicadores que permitam a análise e a avaliação de resultados no que se refere à ressocialização de internos do sistema prisional.
Ressocializar ou resignificar com o propósito de reintegrar o preso à convivência social livre e lícita requer o desenvolvimento de processos de aprendizagem e reeducação nas unidades prisionais, praticamente convertendo-as em espaços não somente de punição, mas sobretudo de saúde, de formação e de reabilitação humana. Esse processo de adaptação ou de condicionamento cultural precisa ser contínuo. E deve iniciar desde os primeiros instantes que o indivíduo ingressa no cárcere, ainda que na condição de preso provisório. Com isso, quer-se ocupar o lugar atualmente dominado pelas facções e pela cultura do crime, do vício, da ociosidade e da violência, fazendo prevalecer a cultura da licitude e do desenvolvimento no interior dos presídios.
Transformar os presídios em espaços de reeducação integral e saúde mental é, portanto, eixo estruturante para um projeto de ressocialização eficaz. Apesar da grave realidade de dominação dos presídios pelas facções criminosas, esse “território” pode ser reconquistado, sobretudo quando diante de ações articuladas do Estado e da sociedade, em especial voltados para ocupar efetivamente os encarcerados. Essa tarefa não se limita aos policiais, aos agentes penitenciários e aos agentes de disciplina, mas depende de iniciativas de gestão e de participação da sociedade nos serviços de execução penal (cidadãos, professores, religiosos, autoridades, esportistas, empresários, artistas, psicólogos, médicos…). Todos podem colaborar. A ressocialização é um processo que visa formar o indivíduo para ser pessoa, profissional e cidadão, aspectos imprescindíveis ao desenvolvimento da sociedade. Antes de sentenciar que o desafio de ressocializar presos é mera ficção, deve-se ao menos buscar pôr em prática ações e providências efetivas para confirmar ou não tal entendimento. Então se poderá dizer alguma coisa nesse sentido e, quiçá, certamente, reconhecer a necessidade de ressocializar para não “lombrar”.
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Abordagem sóbria e oportuna. Parabéns Pontes Filho.
Muito oportuna e necessária a discussão sobre o tema. Só gostaria que fosse indagado à sociedade o que ela quer fazer com os nossos criminosos. Ninguém pergunta o que as vítimas dos criminosos violentos pensam a respeito. A preocupação é sempre voltada para o delinquente _ como um pobre coitado excluído do sistema. Há outros atores envolvidos na questão da violência, além do criminoso, como a vítima e seus entes queridos _ quase sempre relegados ao esquecimento e à dor de suas perdas. Talvez tenha chegado a hora de perguntar à sociedade o que ela espera da justiça.