É, sem dúvida, bastante complexo e, de certo modo, polêmico o tema da ressocialização de presos. O que requer a ressocialização de presos? Estamos socializando pessoas aqui, na sociedade aberta, capazes de ressocializar outras que estão aprisionadas? O que estamos ensinando, no curso de nossa convivência social, serve realmente para que crianças, adolescentes e jovens aprendam a conviver numa cultura de licitude e liberdade?
Ressocializar
Desconfio que para ressocializar alguém preso (lançado em unidade de restrição de liberdade), seja provisório seja condenado, é necessário reaprender a socializar pessoas entre nós, ou seja, formar gente para conviver conosco na sociedade em que vivemos.
Embora seja objeto de polêmica, a ideia de ressocialização é bastante adequada ao presente caso. Quando se fala em socializar ou ressocializar alguém, deve-se atentar para o ambiente e ter como referência o contexto sociocultural do indivíduo ou do grupo. Não se pode socializar ou ressocializar alguém concreto num contexto cultural ou ambiental abstrato. Daí que, se esse cenário, é marcado por uma cultura de viciamento, violência e criminalidade obviamente que a socialização desse indivíduo tenderá a ser distinta daquela de outro sujeito socializado ou ressocializado sob um contexto de prevalência de uma cultura de lucidez, licitude e liberdade.
Não há ninguém que, vivendo em sociedade, não tenha sido por esta, de algum modo, socializado. Seja por meio da socialização primária seja por conta da socialização secundária, a sociedade molda o indivíduo tanto quanto este interage para dinamizar a cultura e as instituições dessa mesma sociedade. Se entre os indígenas tivéssemos nascidos ou sido formados, teríamos sido socializados para viver nessa sociedade. Se nascidos ou formados entre os esquimós canadenses ou aborígenes africanos da mesma forma estaríamos vivendo segundo a socialização dessas sociedades e para essa realidade social. O indivíduo internaliza elementos culturais da sociedade tanto quanto a sociedade pode ser influenciada e repercutir expressões individuais.
Somos moldados culturalmente pela socialização da sociedade em que vivemos. No ambiente do cárcere não é diferente. E, se nada for feito, não há como evitar o aprofundamento da socialização dos presos numa cultura de viciamento, violência e criminalidade. Por esse motivo, é socialmente relevante o esforço de pensar e buscar processos de ressocialização humana a partir do encarceramento, ou seja, reabilitar pessoas para o convívio social livre e lícito a partir da pena privativa de liberdade em estabelecimentos de execução penal.
O desafio de ressocializar
Mergulhar na tarefa de ressocializar é uma experiência relevante e também entregue a inúmeros riscos, inclusive o de frustrar-se. Contudo, é preciso que o mergulho se faça sob pena de decairmos todos nós, ainda mais, numa cultura de desumanização e de barbárie. Pois o que ocorre no presídio não deixa de ser, em alguma medida, também expressão do que acontece em sociedade. Não é mais possível fazer de conta que os presos estão simplesmente isolados ou apartados da sociedade. E que a sociedade não tenha nada a ver com o tratamento de seus encarcerados. Coerente é o oportuno ensinamento que recomenda: “Lembrai-vos dos encarcerados, como se vós mesmos estivésseis presos com eles. E dos maltratados, como se habitásseis no mesmo corpo com eles.” (Hb 13, 3) Não tratar de modo responsável do tema da ressocialização dos encarcerados, apostar tão somente no descarte ou na assepsia social, é ir armando pólvora a execução penal, cujos efeitos desastrosos serão sentidos em ciclos espiralados de grave violência no tempo e no lugar social dos cárceres.
População e a cultura carcerária
A população encarcerada no país, mais de meio milhão de pessoas, de acordo com números oficiais, está sujeita a um padrão cultural nos cárceres marcado, dentre outros aspectos, pela ociosidade, pelo vício, pela ilicitude, pela violência, pela promiscuidade, pela reincidência e pela ética do levar vantagem e se dar bem a qualquer preço.
Uma cultura criminógena é o que os presos aprendem e reaprendem todos os dias nas prisões brasileiras e, talvez, nas de outros países. Esse ambiente cultural, no interior dos cárceres, potencializa a degradação humana e social quando diante de condições materiais, de segurança e de higiene bastante precárias, assomadas à superlotação. Aliás, segundo dados institucionais, a quase totalidade da população de presos no país é constituída de pessoas jovens, pobres e de baixíssima escolaridade.
Diante dessa realidade prisional, as facções criminosas se fortalecem, ofertando alguma “segurança e assistência” ao encarcerado em troca do recrutamento do mesmo para atuar na economia do crime, dentro e fora do estabelecimento penal.
Bumerangue
Como lidar com essa realidade? Quais os meios e os métodos adequados a empregar tendo em vista a ressocialização dos encarcerados, a fim de que convivam reintegrados numa cultura de licitude, justiça e liberdade? Como implantar uma cultura de cidadania no interior dos presídios? Como redefinir os espaços prisionais de modo que eles funcionem como ambientes de ressocialização de pessoas com dívida penal? Isso é realmente possível? O que fazer, afinal, com o preso?
São questões que dependem inevitavelmente das escolhas feitas pela própria sociedade e pelo Estado, no sentido de universalizar as condições para socializar as pessoas (crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos) para uma cultura de licitude, de justiça e de liberdade.
Trata-se de optar por trabalhar e contribuir para tornar as pessoas capazes de conviver e reproduzir a cultura humana de decência, respeito e dignidade suficientes para promover a vida lícita e livre. Do contrário, prosseguira a conivência com a expansão da cultura criminógena em todos os segmentos sociais, cuja expressão mais radical ocorre a partir de sua reprodução no interior dos depósitos de gente chamados cadeias, penitenciárias, unidades prisionais, cárceres, delegacias que ainda funcionam como carceragens etc. E, como um bumerangue, terminam por replicar a violência contra a própria sociedade.
Enfrentar a cultura criminógena
É cada vez mais evidente que já passou da hora de questionar qual o projeto efetivo da sociedade e do Estado para formar gente e contribuir para transformar o infrator encarcerado em cidadão a partir dos presídios.
Sabe-se que um dos maiores problemas é o da ociosidade viciosa e criminosa nos estabelecimentos penais. Como ocupar integralmente o preso no cárcere? Ocupar o interno de maneira que lhe seja útil e também formadora ou ressocializadora?
Essa questão requer outra vinculada a ela: qual a proposta para formar ou socializar aquelas crianças, adolescentes, jovens, adultos e famílias mais diretamente expostas à cultura criminógena, à violência e à vulnerabilidade social? Principalmente, aqueles que se encontram em situação de conflito com a lei.
Tais questões atravessam as instituições sociais e órgãos estatais, organismos públicos e privados, pois se articulam à teia da vida social e da convivência humana, sob as mais variadas formas e diversidades. O tempo todo estamos nos relacionando socialmente. Aprendemos com as outras pessoas, com os fatos, com os aparelhos estatais, com as instituições sociais e com as situações da vida em coletividade. Não há convivência humana e social sem conteúdo pedagógico nem que seja de característica apenas neutra e isenta. Um provérbio lusitano esclareceu bem essa condição ao dizer que “na escola da vida, não há férias”.
Por isso, um processo de ressocialização, ainda mais de encarcerados, requer a aprendizagem de novos padrões valorativos e a resignificação da experiência de vida de cada prisioneiro ao ponto de alcançar-lhes os hábitos, as práticas, os costumes, as atitudes, enfim, o comportamento.
Daí que muitos, negando por inteiro a possibilidade de ressocialização em unidades prisionais, preferem defender a conversão desses espaços de encarceramento em unidades de educação ou saúde integral, seja a presos condenados ou provisórios, pois a finalidade do presídio não se limita ao cumprimento de pena. No entanto, por menor que seja o esforço planejado, educação e saúde no cárcere visa e repercute também na ressocialização do preso, principalmente com vistas à convivência social livre, lícita e segura. Incoerente é negar, de pronto, a possibilidade ressocialização humana, numa perspectiva de convivência ética e cidadã, sem que nada nesse sentido seja efetivamente realizado. É preciso que se faça concretamente algo com vistas à ressocialização de presos para que posteriormente se possa dispor de elementos para analisar e avaliar seus resultados.
Encerrando a conversa
Ressocializar, recuperar, resignificar, reeducar com o propósito de reinserir, reabilitar ou reintegrar o preso à convivência social livre e lícita requer o desenvolvimento de processos de aprendizagem e reeducação nas unidades prisionais, praticamente convertendo-as em espaços não somente de punição, mas sobretudo de recuperação, saúde, formação e reabilitação humana para o convívio social.
Trata-se de ocupar o lugar hoje dominado pela cultura do crime, do vício, da ociosidade e da violência, fazendo prevalecer a cultura da licitude, da justiça, da liberdade e do desenvolvimento humano no interior dos estabelecimentos prisionais.
O projeto de fazer dos presídios espaços de reeducação integral e/ou saúde mental e de ressocialização é, portanto, desafiador. Embora agravado pela realidade de dominação de facções criminosas, isso é erradicável quando diante de ações articuladas do Estado e da sociedade, que ocupem efetivamente os presos nos cárceres. Tal tarefa não restringe apenas aos policiais, agentes penitenciários, carcereiros e agentes de disciplina, mas depende de todos os segmentos da sociedade (cidadãos de competente formação, administradores, professores, religiosos, advogados, autoridades, esportistas, artistas, psicólogos, médicos, artesãos…).
Ressocializar os presos é, enfim, o propósito maior da lei de execução penal brasileira ao dispor, em seu Art. 1°, que a “Execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.” Pois de nada adianta punir ou castigar alguém de modo a torná-lo pior a si mesmo, aos outros e a toda sociedade. Longe de ser uma ficção, a ressocialização dos presos é uma urgente realidade a ser conquistada pelos entes estatais e demais instituições sociais. Aprendamos com aquelas nações e grupos que conseguiram dar significativos passos nesse sentido.
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